O “SINDICALISMO
MILITAR”
25/10/20
“Os militares foram vítimas da
sua própria cultura”
Carlos Branco (Major-General).
O
Major-General Carlos Branco escreveu no Jornal de Negócios de dia 8 de Outubro
de 2020, um artigo intitulado “Acabou-se a Poesia”, onde faz um retrato rápido
e crú, da actual situação das Forças Armadas (FA) (embora longe de exaustivo);
a desconsideração política, que acarreta a desconsideração social (o que
acontece há décadas); terminando a defender a existência do sindicalismo
militar (“proibido” por lei) como solução, ou eventual solução, para o
problema, dando alguns exemplos do que se passa a nível europeu.
O
artigo está magistralmente escrito, possui fio de raciocínio de grande clareza
e apresenta uma série de exemplos da miséria militar da Nação, de uma
pertinência inegável. Verdades como punhos, como soi dizer-se.
A
terapia para o quadro clínico apresentado que é verdadeiro – e não oferece
qualquer hipótese de contestação – é que parece desajustada e errada.
É,
no fundo, combater erros com outro erro…
Não
tenho dúvidas que a solução apontada (partindo do princípio que seria possível
furar o bloqueio legislativo existente) é tida de boa mente e fruto do
desespero e da desesperança existente. Mas iria piorar as coisas antes de as
melhorar.
A
situação actual é, de facto, insuportável e insustentável - o Almirante CEMGFA
também era até há pouco tempo desta opinião mas, entretanto e aparentemente já
a mudou, vide a sua última entrevista,
também referida pelo autor.
Desde
que o Império Romano do Ocidente caiu em 476, foram precisos quase 1500 anos
para se voltar a pôr de pé uma organização militar que atingisse o grau de
apuro a que tinham chegado as legiões e a marinha romanas que tinha
transformado o Mediterrâneo no “Mare Nostrum”.
No
século XX as instituições militares atingiram um apuro inigualável, de que é
exemplo a Aliança Defensiva de maior sucesso que alguma vez foi posta de pé: a
OTAN.
Mas
a partir da queda do muro de Berlim, em 1989, a redução e destruição das Forças
Armadas Europeias e outras tidas como “ocidentais” (não as de outros países)
não deixou mais de se acentuar. Há, porém, princípios, doutrina, regulamentação
e práticas, mantidas por séculos, que se constituem pilares do funcionamento de
uma instituição que no caso nacional estão consubstanciados no Estatuto da
Condição Militar; no Código de Justiça Militar; no Regulamento de Disciplina
Militar e nos Estatutos de Oficiais, Sargentos e Praças, etc.. Tudo isto já
muito adulterado do que devia ser.
Caso
se ponham em causa um ou mais destes pilares, que é o que o Poder Político tem
andado a fazer há 30 anos, com a plácida condescendência (chamemos-lhe assim)
da mais elevada hierarquia militar – parte dela (é bom recordar) tinha chamado
“Brigada do Reumático” a antecessores seus – as FA podem aguentar-se durante
uns tempos, em decadência e cada vez mais irrelevantes, mas quando houver um
caso sério para resolver, colapsam. O caso de Tancos foi apenas um “cheirinho”
do que pode acontecer.
Ora
o Poder Político – independentemente da maneira como está legitimado – tem
legalmente a capacidade de decidir acabar com as FA (o Junot quando cá chegou,
em 1807, também fez um decreto a extinguir o Exército), isso tem. A Costa Rica
decidiu não ter militares e a Islândia não tem Forças Armadas, tendo, no
entanto, entregue a sua defesa à OTAN. As Esquadras 201 e 304 da Força Aérea,
por exemplo, já lá fizeram destacamentos recentemente, para lhes assegurar a
Defesa Aérea.
Agora
o que o Poder Político não tem o direito de fazer, é de, não tendo a coragem ou
o interesse em fechar os quartéis, bases e restantes órgãos, (enfim, já restam
poucos), ir destruindo tudo o que existe, subverter a capacidade dos militares
em actuar e bem cumprir as suas missões e humilha-los perante toda a Nação. Ao
mesmo tempo que lhes tecem encómios de circunstância (a grande máxima é a de os
“elogiar em público” e prejudicá-los – com “f” – em privado…).
Ora,
isto é, exactamente o que tem acontecido, e tal é inqualificável e imperdoável.
Praticamente
só falta aos militares que restam – agora quase transformados em bombeiros
(não) voluntários e tarefeiros de trabalho braçal – irem para a rua como
aqueles, vender senhas de rifas para sorteio de um prémio, a fim de angariar
fundos…
Assim
sendo, pode concluir-se que a responsabilidade do que se tem passado e do
estado “comatoso” (como também refere o MGen. Branco) a que chegaram as Forças
Armadas Portuguesas, tem que se procurar nos diferentes órgãos do Estado com
responsabilidades para com a Instituição Militar (IM) (sobretudo o PR, AR e
Governo – que deviam em primeiro lugar representar politicamente os militares
devido às suas limitações de cidadania), os Partidos Políticos – um cancro
nacional – que envenenam a opinião pública, servindo-se, na maioria dos casos,
dos órgãos de comunicação social, cuja prática deontológica é porventura a pior
de todas as classes profissionais.
O
pensamento (se é que algum) e a prática dos Partidos Políticos de que somos
servidos, relativamente às FA têm sido, toda ela, péssima e tem a ver com a
realidade vivida antes, durante e após o 25 de Abril de 74, e em preconceitos
sociais e ideológicos existentes. Isto necessita de uma análise alargada (que
já fiz em vários âmbitos) que não cabe agora e aqui.
As
sucessivas chefias militares, nomeadamente após a publicação da Lei 29/92 (Lei
da Defesa Nacional e das FA) – que não deixa de ser também um ajuste de contas
com o Conselho da Revolução e o “Pacto MFA-Partidos” – e sobretudo após a lei
que mudou a sua escolha e nomeação, no primeiro governo de Cavaco Silva, nunca
conseguirem – “vítimas da sua própria cultura” – atinar com o que foi
sucedendo.
Pior,
nunca se entenderam sobre o que fazer em conjunto; erraram por ignorância,
ingenuidade e “não querer ver nem acreditar”, no que se estava a passar, a que
se deve juntar alguma falta de coragem moral, para tomarem atitudes
consentâneas com as novas realidades. E as suas responsabilidades.
Daí
resultou nunca ter havido qualquer estratégia comum (ou reavaliação da mesma) e
nunca se ter conseguido andar à frente de coisa alguma, o que revela uma falha
grave num Comandante/Chefe: não prever. A única coisa que se conseguiu foi ir “resistindo”
e “o salve - se quem puder” de cada Ramo…
A
que também se juntou – para complicar as coisas – a GNR.
Agora
o Sindicalismo Militar.
Não
sei de quais “Democracias avançadas, ou mais avançadas” fala o autor, de que
“Portugal se encontra a grande distância”, tão pouco em que se traduz esse
avanço. Ignoro ainda o que é que a Democracia tem a ver com a qualidade de um
Exército…
Sem
embargo, constato que é na maioria dos países onde se enche a boca com a
palavra “Democracia” (que não é elixir de coisa nenhuma, mas apenas uma forma
de organização social e política) que os pilares da IM e do funcionamento das
FA e a imagem dos militares têm sido mais solapada. A única coisa que se fez
(nos casos menos maus) foi verter para cima da “tropa”, dinheiro e tecnologia.
O termo sindicato tem origem no
latim (sindicus) e no grego (syn-dicos). No grego é “aquele que defende a
justiça; no latim o termo denominava o “procurador escolhido para defender os
direitos de uma corporação”. Ora quem na vida militar está encarregue da
justiça e da defesa da “corporação” são os chefes militares. Não outra entidade
qualquer.
Por tal facto caíu muito mal em
toda a IM o lamentável “lapsus linguae” do então CEMGFA, General Soares
Carneiro (que era um homem inteligente e bom militar), ao dizer que não era
“chefe de nenhum sindicato”, o que teve algum peso na decisão de criar a
Associação dos Oficiais das FA. Convém lembrar estas coisas, pois a memória é
curta, sobretudo para quem não tem as melhores intenções.
A significação de sindicato
começa por o definir como uma associação de trabalhadores cujo objectivo é o de
resolver problemas de salário; de contratação e de condições de trabalho.
Ora nada disto se aplica ou pode
aplicar a um “Exército”, em primeiro lugar porque num Exército não há
“trabalhadores”, muito menos “colaboradores”, mas sim servidores; e não se
trabalha, presta-se serviço. Serviço que não pode ter um horário, mas sim um
horário de referência (conhecem algum horário numa guerra?); ou seja
trabalha-se quando é preciso, descansa-se quando se pode.
Um militar não Está, um militar É,
e o limite que o seu serviço impõe só finda no sacrifício da vida. Ora tal não
é compaginável com qualquer acordo negocial que um sindicato queira fazer… Tal
é a essência da condição militar, uma condição que se pode considerar
escatológica e que não pode ser mudada pelo livre arbítrio seja de que governo
for, pois tal compromisso é para com a Nação e a Pátria!
Quando
era Major estive em missão numa base aérea da Dinamarca, durante 10 dias, em
meados dos anos 80.
Num
dos dias, verifiquei que havia muito menos movimentação de pessoal e comentei o
facto com um capitão inglês destacado numa esquadra de voo estacionada em Karup
(assim se chamava a base). O oficial explicou-me que tal se devia a um
“plenário” de sargentos no âmbito das actividades do seu sindicato; logo
acrescentando que nunca nos passasse pela cabeça ter coisa semelhante em
Portugal, acrescentando vários adjectivos depreciativos.
Nessa
noite, creio, durante um jantar em casa do comandante de esquadra, oferecido
por este, onde também se encontravam alguns oficiais do Estado-Maior
Dinamarquês, levantei a questão dos sindicatos, tendo um daqueles, entre várias
coisas, dito que a criação do sindicato se deveu a que a hierarquia da altura
não tinha sabido ou conseguido, resolver os problemas então existentes. De tudo
dei conta superiormente no relatório que escrevi no fim da missão.
Antes
disso, ainda alferes ou tenente, fui nomeado para acompanhar três majores e um
tenente holandeses, que aterraram na Base Aérea de Monte Real, em dois F5-E,
para fazerem uma “inspecção” à base, com o intuito de prepararem uma futura
visita de uma esquadra de voo do seu país, para treino conjunto e troca de
conhecimentos mútua. Os três Majores oriundos da Academia Militar tinham um
comportamento adequado, mas o Tenente (miliciano) evidenciava a sua falta de
preparação militar.
Como
tinha nascido na África do Sul, tinha tido contactos com Moçambique e falava
algumas palavras de português, o que deve ter justificado a sua vinda. O rapaz
atrapalhou-se e hesitou em fazer a continência ao entrar no gabinete do
Comandante e vim a saber depois, que na Holanda ficava ao livre arbítrio de
cada um fazer continência ou não, conforme entendesse. Sabe-se como estas
“democracias avançadas” (presumo eu) experimentaram de tudo e puseram tudo em
causa. Também passaram a andar com cabeleiras e barbas grandes (como no nosso
“PREC”, só que os nossos nunca usaram rede…), etc..
A
Holanda também passou a ter sindicatos militares. Certo é que, com tantas
“ideias avançadas” acabaram em desastre, quando um batalhão holandês
(inteirinho) foi cercado e apanhado à mão, em Srebrenica (no último conflito
dos Balcãs), sem ter disparado um tiro.
Os
canadianos também intentaram acabar com os Ramos e fundiram todos num só e
acabaram por voltar atrás. Para já não falar nos soviéticos e comunistas
chineses (também muito democratas) que, após o início das respectivas
revoluções, intentaram controlar os comandantes militares com comissários
políticos, ou abolir os postos. O desastre resultante levou ao rápido recuo em
toda a linha.
Mas
os néscios nunca aprendem ao passo que os perversos agem com dolo. Refinado.
Sejamos
claros: os sindicatos militares são a antítese da condição militar, assim como
a prática democrática é incompatível com o múnus militar no sentido em que a
escolha dos comandantes e as decisões não são (nem devem ser) efectuados por
votação.
Mas num país que possui
sindicatos de magistrados tudo pode acontecer…
Um
sindicato acaba por ser (na prática) uma cadeia paralela de comando – apesar do
meu estimado camarada afirmar que não é essa a intenção – e como elemento
perturbador da disciplina que é o cimento que mantém um Exército de pé, e
corroer a coesão do todo militar. Põe ainda em causa o princípio da unidade de
comando e dilui a respectiva responsabilidade (e muitas mais coisas).
Ora tudo isto não deve sequer ser
beliscado.
Sabe-se
que a principal “arma” dos sindicatos é a greve. Ora dificilmente seria
permitido a um sindicato militar fazer greve. Veja-se o que se passa na PSP
(que também jamais devia ter sindicatos). Seria engraçado até, ver um
sindicalista decretar greve a um exercício ou “maxime” entrar em greve quando
houvesse operações reais a decorrer…
Ora não sendo possível fazer greve
quais seriam as “armas” dos sindicalistas?
Não
se percebe muito bem, ainda, como é que se organizariam os sindicatos. Seria
por postos? Por armas e serviços? Por especialidades? Transversais? Por
unidades? A guarnição da Fragata Vasco da Gama, por ex. poderia vir a ter um
sindicato? (olhem a Marinha até tem experiência de coisas parecidas, lembram-se
das células carbonárias que revoltavam navios aquando da I República? Ou dos
“sovietes”, de marinheiros que prendiam oficiais e tomaram de assalto dois
navios em 1936 e os queriam levar para Espanha, para se juntarem aos republicanos?).
Na Força Aérea esteve para haver uma espécie de greve de pilotos, nos anos 80.
A palavra passe foi “Monte Real arriou a jiga”. Muitos dos intervenientes ainda
estão vivos e alguns mesmo, no activo.
Não
temos mesmo juízo e não se aprende nada. E, pelos vistos, foi sempre assim.
Em
1415 conquistou-se Ceuta após uma judiciosa preparação de alguns anos e
idêntica execução (apesar de feliz), mas apenas 22 anos depois fez-se tudo mal
no ataque a Tanger que resultou num desastre e grande sofrimento moral para o
Reino.
No
fim do reinado de D. João V, que penso ter sido o período em que mais riqueza
entrou em Portugal (excepção para os fundos europeus), as sentinelas pediam
esmola à porta dos quartéis…
Creio
que não necessito ilustrar mais o ponto.
Por
isso a solução dos problemas da IM, não reside na criação de sindicatos, o que
representaria tentar emendar asneiras com mais asneiras e nunca poderia resolver
os problemas pelo simples facto de não se estar a atacar as causas, mas
efeitos.
Ora
as causas (no presente) da miserável situação da IM, dos militares e da defesa
do País, está como já foi dito, na classe política que temos (que ocupa os
cargos mais importantes do Estado) e que foi eleita, apenas parcialmente, pela
população – o que já de si diz muito da qualidade e justeza do regime e sistema
político vigente – a qual tem desprezado sobranceiramente toda e qualquer
política de defesa nacional e consideração pela IM; e da falta de capacidade e
nervo da hierarquia militar em contrariar o “status quo”, o que também tem
explicação num conjunto de premissas e realidades que não vou explanar, embora
queira explicitar três: a necessidade em mudar o modo como a escolha das
chefias militares é feita – que entre outras coisas está excessivamente
governamentalizada – a necessidade de reverter toda a diminuição de outorga de
autoridade compatível com as responsabilidades que lhes estão atribuídas e a
necessidade do seu conselho estratégico ser tido em conta e ponderado
adequadamente pelo Poder Político.
Os
problemas derivados de tudo o atrás citado (por exemplo o que se passa com a
Comunicação Social) trata-se, a seguir, por decreto-lei, embora só tenha uma
resolução efectiva através de um sistema de instrução e educação adequado.
Obviamente nos antípodas da actual disciplina de educação para a cidadania…
Não
há outra volta adequada a dar a isto, a não ser por golpe de estado. Mas a
experiência que já levamos desde 1817, leva a crer que daí nunca resulta grande
coisa.
Ser
“vítima da sua própria cultura” também merece uma larga apreciação, mas fica
para uma outra vez.
João
José Brandão Ferreira
TCor PilAv
(Ref.)
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