A LENTA AGONIA DAS
FORÇAS ARMADAS PORTUGUESAS
24/3/18
“Diz uma parábola que certo
dia a mentira e a verdade se encontraram.
A mentira disse
para a verdade:
- Bom dia, dona
Verdade.
E a verdade foi
conferir se realmente era um bom dia. Olhou para o
alto, não viu
nuvens de chuva, várias pássaros cantavam e assim,
vendo que
realmente era um bom dia, respondeu para a mentira:
- Bom dia dona
mentira.
- Está muito
calor hoje, disse a mentira.
E a verdade,
vendo que a mentira falava verdade, relaxou.
A mentira então convidou
a verdade para se banhar no rio. Despiu-se
de suas vestes,
pulou na água e disse:
Venha, dona
Verdade, a água está uma delícia.
E assim que a verdade, sem duvidar
da mentira, tirou as suas vestes e
mergulhou, a mentira
saiu da água, vestiu-se com as roupas da
verdade e foi-se
embora.
A verdade, por sua vez,
recusou vestir-se com as vestes da mentira e,
por não ter do
que se envergonhar, saiu nua, a caminhar na rua.
Mas viu que, aos
olhos das pessoas, era muito mais fácil aceitar a
mentira vestida
de verdade, do que a verdade nua e crua.”
Como
seguramente já poucos se recordam – dado que a velocidade em que se vive
mancomunada com os dilúvios de notícias, informação e porcaria, com que os órgãos
de comunicação social nos brindam diariamente – o Semanário “Expresso” de 3 de
Fevereiro, escreveu em parangonas de primeira página, que “Os Chefes Militares
Unem-se Contra o Governo”, com que intitulava o conteúdo da notícia, não da
informação, que a seguir desenvolvia.
A notícia englobava já (tenham isso em
conta) uma reacção à própria notícia por parte do MDN, ao contrário dos
gabinetes do Exército, Armada e Força Aérea, que se recusaram a comentar.
No mesmo dia saíu um comunicado do
Gabinete do Chefe de Estado - Maior General das FA (e é lícito ponderar se o
comunicado foi apenas uma iniciativa dos chefes militares ou se teve algum
“empurrão” do senhor ministro), assinado por um coronel, intitulado “porta-voz”
das Forças Armadas – função que, confesso, desconhecia existir.
A
notícia (do Expresso), que na linguagem do âmbito das informações militares,
poderia ser qualificada entre A a F e de 1 a 6, quanto ao grau de credibilidade
da fonte e verosimilhança, tentava um “furo” jornalístico tornando público um documento
oficial com origem no Conselho de Chefes de Estado-Maior (CCEM),[1]
dirigido ao Sr. Ministro da Defesa Nacional (MDN) – o qual na realidade não
existe, e devia chamar-se Ministro para, ou, das Forças Armadas [2] o
qual mostrava o “incómodo” e a “crítica” dos Chefes Militares relativamente a
decisões governamentais que afectam a Instituição Militar.
Nomeadamente
e transcreve-se:
“Poder
por em causa (a falta de efectivos) algumas missões e configurar um tratamento
de iniquidade das FA em relação às Forças de Segurança”; “configura um
acréscimo ao nível de risco”; “a redução ou cancelamento de missões, além de
assumir riscos não negligenciáveis em termos de segurança do pessoal, coletiva
e de instalações”; “o presente ajustamento condicionará igualmente a qualidade
e quantidade desse reforço; impossibilitará a adequação de necessidades
emergentes em áreas específicas…”;
“Impossibilitará
a adequação dos efectivos militares dos quadros permanentes na situação de
activo, a desempenhar funções fora da estrutura orgânica das FA”; “representa
um afastamento progressivo aos objectivos estabelecidos no âmbito da Reforma
Defesa 2020” (que tinha estabelecido um tecto em pessoal para as FA, de 32.000
militares, dos quais apenas existem actualmente 28.000”.
Ora
aquilo que é transcrito é a mais pura das verdades e só peca por estar a anos-luz
dos “alertas” e “críticas” que os Chefes Militares têm para tecer ao Poder
Político que os tutela – melhor dizendo, os tem pela trela – já que as FA se
encontram em modo de pura sobrevivência, após terem sido sujeitas à maior
redução, desarticulação e desconsideração que há memória no País, nos últimos
30 anos e que nenhum Corpo do Estado ou grande empresa civil, teria capacidade
para funcionar e sobreviver caso fosse sujeita a um décimo de tal.
E o que é dito não configura
nenhuma conduta incorrecta ou condenável, “contestação”, “subida de tom”,
“tilintar de espadas”, “ser inédita”, “insólita”, “desafiante” e outros
disparates que vi escritos, mas tão só “correcção, respeito, frontalidade e
lealdade”, como vem escrito no comunicado do EMGFA.
Sem que tal envolva qualquer
crítica ao conteúdo do documento é mister tecer dois ou três comentários.
A preocupação refletida no
memorando é a falta de pessoal – que é gritante, desmesurada e vai piorar –
tanto em quantidade como em qualidade. [3] E
a “iniquidade” tem a ver com o favorecimento que tem sido feito relativamente
às Forças de Segurança (nomeadamente a GNR), o qual já vem muito de trás e tem
razões específicas e profundas. O mesmo já tinha acontecido, aliás, nos tempos
funestos da I República.
Uma outra preocupação que ressalta
é o cuidado em que os chefes militares tentam pôr as suas barbas de molho,
precavendo-se de mais alguma bronca tipo assalto aos paióis de Tancos, que
apesar de tudo o que já foi dito e escrito, ninguém sabe o que se passou, como
o último relatório vindo a público comprova.
O derradeiro comentário tem a ver
com a justificação do ridículo aumento de pessoal concedido, de 200 homens (no
fim do ano haverá muitos menos!), que se justificam por causa dos incêndios.
Ora isto é, além de ridículo,
cretino e demagógico. A missão primária das Forças Armadas não tem nada a ver
com incêndios, e quem se alista no Exército, na FA e na Marinha, não é
seguramente para ser bombeiro. Porque é que não arrebanham os advogados, os
enfermeiros ou os professores de liceu (por ex.), para irem ajudar a combater
incêndios ou limpar matas? A única coisa que se justifica poder fazer-se tem a
ver com a operação de meios aéreos por parte da FA neste âmbito, por razões
ponderosas de economia de meios, comando e controlo, de manutenção e de
prevenção de eventuais fraudes no negócio existente. Sem embargo o estado muito
degradado da actual situação e o modo como estão a tentar passar
responsabilidades para a Força Aérea (depois de se andar a fazer asneiras
durante 20 anos), vai ser um autêntico “presente envenenado”!
Finalmente as considerações feitas
ao Expresso pelo gabinete do Sr. Ministro, são despropositadas e não têm ponta
por onde se lhe peguem. E tudo o que tentam escovar do capote cai-lhes em
responsabilidade e culpas, maioritariamente, em cima.
Com o cobarde à vontade e
displicência, de saberem que os chefes militares não lhes podem responder.
Isto é, podem, mas no dia seguinte
seriam demitidos, sendo o seu carácter possivelmente assassinado na praça
pública por alguns jornaleiros de serviço.
O
que é dito na notícia – e que ninguém oficialmente desmentiu - o que a
classifica como “A1” – e que é mais grave, é que a actual situação nas FA
configura um risco exponencial para a Segurança e Defesa Nacional, tudo
correndo nas barbas da população e de todas as instituições nacionais, sem que
qualquer sinal de preocupação seja evidenciado.
As
razões porque as coisas se passam assim deviam, indubitavelmente, preocupar-nos
mais do que a “táctica” dos treinadores das equipas de futebol para o jogo
seguinte…
A
imbecilidade está, de resto, instalada. E é incentivada.
*****
Vamos reproduzir o comunicado do
EMGFA, intitulado “Esclarecimentos sobre Efetivos Militares”, pois vale a pena:
“Tendo surgido na comunicação
social notícias relativas a um memorando do CCEM, os quatro chefes militares
reafirmam que o relacionamento institucional com o Governo e designadamente com
Sua Excelência o MDN tem sido, e continuará a ser, caracterizado pela correção,
respeito, frontalidade e lealdade.
Lamenta-se que partes do citado
memorando tenham sido objeto de divulgação pública nos órgãos de comunicação
social.
Mais se esclarece que, independentemente
do diálogo institucional estabelecido no quadro dos processos relativos aos
efectivos militares, não esteve, não está, nem estará em causa o cumprimento
das missões das FA”.
Ora
perante o que se passou - e que, repito, já quase ninguém se lembra – perpassam
várias perplexidades.
A
primeira prende-se com o facto de ninguém de direito, vir afirmar que o
documento é verdadeiro ou falso. Aliás, se fosse afirmado que era falso, nada
mais haveria a dizer...
A não ser colocar o jornal em tribunal.
A segunda tem a ver com o comunicado
do CEMGFA (melhor dizendo ex-CEMGFA) que referia (sem desmentir a notícia,
antes confirmando-a, apesar de dizer que apenas partes do memorando terem sido
expostas) que “o cumprimento das missões das FA não estava em causa”.
O
silêncio teria sido aqui de ouro (caso o MDN nada tivesse dito) e a palavra de
prata se tivesse sido outro o discurso.
Ora também não se entende como se
pode comentar o documento já que no mínimo, se trataria de matéria classificada
como “reservada”…
A
terceira, lida com o facto de se saber como é que o documento foi tornado
público.
Já
a questão do comunicado do CEMGFA parece perfeitamente dispensável, até porque
o que transparece é que se está a dar uma sabujadela ao Governo; dar o dito por
não dito e de falta de coragem em assumir seja o que for, neste caso o estado
lastimável em que a Instituição Militar se encontra (e toda a gente sabe que o
cumprimento das missões não só está em causa, como está completamente em
causa!).[4]
O que levou o agora comentador
Marques Mendes a dizer com um sorrisinho nos lábios, na “SIC”, que “em matéria
de chefes militares isto já não é o que era…”.
As coisas a que estes meus camaradas
se sujeitam…
E
aquele “pormenor” referido (na tal notícia do Expresso), de que o CEMA não
assinou o documento sendo o seu vice a fazê-lo, (não passa na cabeça de ninguém
que o mesmo o tenha feito à revelia daquele) está hoje ultrapassado pois o primeiro
passou a CEMGFA e o segundo substituiu-o no anterior cargo.
A
última perplexidade é o facto de não haver fugas de informação apenas no âmbito
do Segredo de Justiça…
Ou
seja, como é que o órgão de informação “Expresso” teve conhecimento do documento?
Pois
parece apenas haver cinco hipóteses, a saber: ou houve fuga de informação nos
gabinetes do CEMGFA, do CEMA, do CEME, do CEMFA ou do Ministro, ou o jornal
possui um ou mais “espiões” nalgum destes locais. Dificilmente se saberá.
Descartando
esta última hipótese (por mero exercício académico), resta uma pergunta: a quem
interessava fazer esta fuga de informação?
Eis
mais uma prova provada (se ainda fosse necessário apresentar alguma), que o bom
do Padre Américo, se foi deste mundo sem ter acabado com os malandros todos.
João
José Brandão Ferreira
Oficial Piloto Aviador
[1] Para
quem não é conhecedor de tais siglas esclareço que este conselho reúne o Chefe
de Estado - Maior General das FA e os três chefes dos Ramos (Exército, Força
Aérea e Marinha).
[2] Durante
mais de 30 anos condenei o uso do termo “ibéricas” para qualificar as cimeiras
com esse nome que se realizam a cada semestre, e que se deviam chamar luso -
espanholas. Há cerca de três ou quatro anos, o Governo lá mudou o nome conforme
sempre defendi. Também tenho esperança que, um dia, mudem a designação de MDN
para MFA (Ministério das Forças Armadas) ou então, o que seria melhor, assumissem
a Defesa como tal.
[3] A gravidade do assunto é
já de tal ordem que a própria Assembleia da República vai realizar um debate,
fora do hemiciclo, no dia 28 do corrente, sobre o assunto, nomeadamente sobre a
falta de candidatos para o regime de voluntariado e contrato. Coitados, acordam
sempre tarde para o que é importante…
[4] Ou, então, nunca estão em
causa se usarmos de dois expedientes retóricos: por maiores que sejam os meios
nunca será possível garantir o cumprimento de todas as missões em todas as
circunstâncias; ou, que cumprindo apenas um bocadinho de uma missão qualquer,
isso já representa o cumprimento da missão, apesar de parcial ou mínima! Dá
para todos os gostos…