ERA PILOTO
MILITAR, PILOTO CIVIL E BOMBEIRO. E DEVIA?
17/09/19
“A vontade por si,
sem obediência do entendimento,
lhe desconserto”.
Bispo
de Silves (para D. Sebastião)
A
morte do Capitão Piloto-Aviador Noel Ferreira, no pretérito dia 5 de Setembro,
causou natural consternação nos meios em que ele se movimentava e em parte da
opinião pública, alertada para o facto pela comunicação social, que do caso fez
cobertura, o que foi exponenciado por declarações de personalidades com
responsabilidades no aparelho do Estado.
Não
posso também deixar de me associar na homenagem a um camarada e “colega”
aviador, que morreu voando e nos respeitos à família.
Tenho,
infelizmente, uma longa experiência em acompanhar à sua última morada,
aviadores com quem privei e que desapareceram vítimas de acidentes no exercício
das suas funções de piloto. Profissão que não se abraça ou exerce, por norma,
apenas para ganhar o pão-nosso de cada dia, mas porque se ama.
Estando
agora a sua alma voando num cantinho do céu – assim esperamos – continua a vida
na terra, pois esta não pára de rodar sobre si mesma, em ciclos de 24 horas, ao
mesmo tempo que perfaz uma elíptica à volta do sol, no que leva 365 dias.
E
o que se passou com ele (Noel Ferreira), ou com outros, deve servir para
aprendermos a viver melhor enquanto não chega a nossa vez de partir seja para
onde for que a natureza ou quem, eventualmente a criou, nos envie.
O
que aconteceu ao jovem militar português que há pouco se apartou do nosso
convívio, levanta uma série de questões, que é mister tentar equacionar,
responder e, eventualmente emendar.
Aquela
que aparece à cabeça é esta: sendo o Capitão Noel Ferreira oficial do quadro
permanente de um ramo das Forças Armadas, na situação de activo (estando
colocado na Esquadra 751, da Base Aérea 6, do Montijo, que opera os
helicópteros EH-101) como pode aparecer a voar numa aeronave de uma empresa
civil privada, a noticiada “Afocelca”?
Sendo
a mesma pergunta válida para o facto de desempenhar as funções de Comandante
dos Bombeiros Voluntários de Cête. Estas funções são remuneradas?
Tudo isto tendo em conta a Lei 11/89, de
1 de Junho, Estatuto da Condição Militar e o Decreto – Lei 90/2015, de 29 de
Maio, Estatuto dos Militares das Forças Armadas, documentos que o proíbem expressamente
– respectivamente nos seus Art.º 2 a) b) f) g) h) e Art.º 14.1, 3, 4; e Art.º
123 (Princípios) a) b) c) d) e) h) i).[1]
A
Força Aérea, já veio admitir publicamente que o capitão estava autorizado a
voar para a empresa referida – sem prejuízo para o serviço, obviamente – o que
origina uma outra pergunta: como é que um Chefe de Estado-Maior pode com um
despacho seu (presume-se que os Ministros da tutela não sabem, ou se sabem, têm
feito de conta) pode contrariar uma lei e um decreto-lei, face à hierarquia das
leis?
Pois, porque o número 2 do Art.º 14
especifica o seguinte: “O desempenho de funções em regime de acumulação depende
de autorização prévia do chefe de estado – maior respectivo, de acordo com o
regime de incompatibilidade e acumulações fixado para o exercício de funções
públicas, com as necessárias adaptações.”
Existe ainda o Art.º 146, do EMFAR,
relativo a “Desempenho de cargos e exercício de funções fora da estrutura
orgânica das FA”, os quais carecem de autorização do MDN sobre proposta do
respectivo Chefe de Estado – Maior. Que será o que porventura, se aplica ao
exercício da função de comandante dos bombeiros…
Ou seja, a actual legislação para
além de deixar muito a desejar no seu português, é por norma, ambígua,
subversiva do espírito da mesma, com “alçapões” dissimulados, o que acaba por
dar para tudo; permitir o exercício discriminatório da chefia e tender a
transformar situações de excepcionalidade, em versões correntes!
Ou seja é tudo subjectivo ou
relativo…
Ora o que é subjectivo e relativo,
não deve constituir lei nem regula coisa alguma.
Moral da história, não são precisas
leis para nada!...
*****
No
caso vertente, a função que o Capitão Ferreira exercia há cerca de dois anos,
de comandante de uma corporação de bombeiros, até parece - dadas as notícias
vindas a público - que era a sua actividade principal (a foto do falecido
fardado de bombeiro e a da sua urna coberta com a bandeira da corporação e não
a nacional, são inquestionáveis a este respeito). Como também não devia haver
misturas entre honras militares e homenagens dos bombeiros.
Aliás quem esteve presente no
funeral foi o MAI não foi o MDN…
Um
outro aspecto “curioso” em todo este âmbito é o de que a FA, desde que lhe foi
atribuída a responsabilidade de fazer os contratos dos meios aéreos para
combater os fogos (uma decisão assaz gravosa para a FA nos moldes em que foi
feita) teria proibido os seus pilotos de poderem voar nas aeronaves
contratadas, o que se percebe dada a possível conflitualidade de interesses em
jogo.
Mas
logo surgiu uma notícia de que o Ministério Público teria detectado vários
casos de pilotos que à revelia da disciplina militar (imagine-se!) incorriam no
atrás citado. Isto é, continuavam a operar em empresas em que não era suposto
trabalharem.
E
que iriam actuar judicialmente.
Se
isto for verdade, como é que é possível que aconteça?
Para
além destas autorizações, normalmente dadas para o período de férias de Verão,
existem, ou existiram, permissões para pilotos militares darem instrução, por
exemplo, aos fins – de - semana, ou fora das horas normais de serviço, em
escolas civis (já apareceram até pedidos de militares para serem condutores na
“Uber” e não só – estão recordados daquele caso inominável do capitão que ia
ser motorista de um Secretário de Estado, o que foi parado, e bem, pelo
Exército?).
Mas
aqui também se levantam outras questões e a primeira é já esta: ser militar – e
agora aqui não há distinção de especialidades – não é (eu já nem pergunto se
não deve) uma ocupação a tempo inteiro?
Ou será que as chefias entenderam
que permitindo estas “flexibilidades” travam as saídas de tantos pilotos?
Se
a autorização é dada para se voar em período de férias ou fora do período
normal de serviço (note-se que por definição derivada do estatuto da condição
militar, um militar não trabalha, presta serviço; não tem horário de trabalho,
mas sim um horário “normal” de trabalho; isto é, serve quando é preciso e
descansa quando pode, etc.) tal não põe em causa o conceito de licença de
férias, ou de descanso e de convívio com a família, social, etc.? Então vai-se
de “férias” para se trabalhar “o mais possível”, nesse período? Para arredondar
o vencimento, presume-se?
E
como é que no caso dos pilotos, se controlam os períodos de voo com os
requeridos períodos de descanso entre eles? E como se gere as situações
inopinadas, como seja a de chamar um militar em qualquer momento por causa de
uma qualquer emergência? Como se pode garantir que o serviço não sai
prejudicado?
Ou
eu me engano muito ou a Força Aérea vai ter alguma dificuldade em ficar bem
nesta fotografia…
*****
Mas
as perguntas (infelizmente) têm de continuar.
Dadas
as circunstâncias da morte do piloto, parte-se do princípio que a pensão de
sobrevivência vai ser paga pela Caixa Geral de Aposentações baseado nos descontos
feitos pelo militar enquanto ao serviço da Força Aérea – apesar de como já
disse, parecer que a actividade principal do jovem Noel Ferreira era ser
bombeiro e aviador civil e não piloto militar…
Mas
quem é que vai pagar a pensão de sangue?
Note-se
que o PM António Costa disse distraidamente ou não, à frente das camaras,
que o piloto “não tinha morrido ao serviço do Estado…”.
Vão ser os bombeiros? A empresa que
trabalha para as celuloses? Estas últimas? O seguro? Ninguém? E isto note-se,
depois de se afirmar publicamente que o “helicóptero (acidentado) apesar de não
estar ao serviço da Autoridade Nacional da Protecção Civil integra o
dispositivo de combate aos incêndios rurais”. Alguém sabe explicar o que é que
isto quer dizer exactamente?
E
por outro lado porque se começou a apelidar o falecido de herói?
É
certo que a actividade de piloto é difícil e exigente e que no caso do combate
a incêndios tem um ónus de perigosidade acrescido, o que exige uma qualificação
específica – embora esteja longe de chegar à exigência requerida nas missões
que o malogrado piloto desempenhava na Esquadra 751 – mas nada do que
aconteceu, parece-nos, configura algo de extraordinário, que saia fora do
comportamento normal exigido pela profissão, de modo a poder qualificar a sua
morte como heróica.
Nada
do que estou a dizer se destina a menorizar de algum modo, a figura do militar,
piloto e cidadão que teve a infelicidade (e nós com ele) de perder a vida antes
de chegar a uma idade provecta, mas para colocar as coisas nos seus termos
adequados de modo a não se fazer demagogia ou a aplicar mal o termo,
gastando-o, vulgarizando-o e apoucando-o.
E
para ele ser herói, então todos os outros que cumprem a mesma missão também têm
de o ser, sem terem necessidade de morrerem para tal.
Quero ainda chamar a atenção para a
Portaria 742/93, de 18 de Agosto, dos Ministérios das Obras Públicas,
Transportes e Comunicações e do Emprego e da Segurança Social, que regulamenta
o chamado “trabalho aéreo” onde a actividade aérea de combate aos fogos se
insere.
Nela
se aprova a tabela do tempo de serviço de voo e repouso dos pilotos de
aeronaves a operar em trabalho aéreo.
Pergunta-se
quem faz a supervisão destes valores? Os pilotos? A Autoridade Nacional da Aviação
Civil? As empresas empregadoras? Uma mescla dos três? Alguma outra entidade dos
ministérios envolvidos?[2]
Que
papel tem nesta supervisão, na parte que lhe tocar, o Serviço Nacional de
Protecção e Emergência Civil e a Força Aérea?
Estou
certo que o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves (e
de Acidentes Ferroviários) – que se deve independentizar rapidamente dos
acidentes ferroviários que uma reorganização infeliz e apressada juntou – irá
debruçar-se detalhadamente sobre este assunto.
E
talvez venha até a propor alguma clarificação na interpretação da mesma lei de
modo a evitar possíveis zonas “cinzentas”.
Para
finalizar, alguém sabe responder à questão, que não parece despicienda, de
saber como é que um cidadão que mora no Montijo pode “comandar” uma corporação
de bombeiros em Cête (a cerca de 300 Km de distância)?
Ou
posto ao contrário, como é que um militar pode exercer a sua actividade na Base
Aérea sita no Montijo, a partir de Cête? Base Aérea que, ou nos enganamos
muito, vai ser mais um aborto desta III República, ao ser transformada em apeadeiro
do Aeroporto da Portela!
E
já agora esta outra: quem vai ressarcir a Força Aérea ou a mim, que
ajudei a pagar (como cidadão) a formação de um Capitão Piloto-Aviador (um
balúrdio) que morreu a exercer uma função onde não era suposto morrer?
Até
há cerca de 10/15 anos (não sei precisar) a Força Aérea não autorizava ninguém
a trabalhar fora da Instituição.
Porque
o passou a fazer? Eis uma boa pergunta para colocar às chefias.
Como
não tenho a certeza do que se passou e não estou mandatado para falar por ninguém,
nem atacar ou defender seja o que for, vou apenas adiantar o que me parece. E o
que me parece não é lá grande coisa.
A
frase acima carece, no entanto, de clarificação.
Quando
dizemos que não autorizava, deve entender-se como não exigindo nenhuma autorização
escrita e não contemporizando com trabalho extra – serviço, por parte de
pilotos. Porque contemporizava - o mesmo acontecendo com os
outros Ramos – com o exercício de actividades profissionais, de elementos de
outras especialidades, fora do horário normal de serviço. Bom, para sermos
completamente verdadeiros e correctos, nalguns casos até, dentro dos horários
normais de serviço.
E
isto acontecia desde, sei lá, o Conde de Lippe – grande líder militar e
organizador que apenas conseguiu pôr ordem na tropa enquanto cá esteve… (o
mesmo acontecendo com Schomberg e Beresford).
Ora
aqui reside a primeira “justificação” para se autorizarem os pilotos –
especialidade assaz peculiar dentro das Forças Armadas de qualquer país – a
trabalharem fora da Instituição Militar (para o caso de ainda não terem
reparado as Forças Armadas são uma Instituição, não um emprego, como os
outros…). Pois por que carga de água é que todas as especialidades, armas ou
classes, donde se destacam engenheiros, economistas, informáticos e com médicos
e enfermeiros, à cabeça, podiam exercer, na prática, “part-time” e os pilotos
não?
Ora
acontece ainda, que cada vez mais a Força Aérea tem dificuldade em recrutar e selecionar
mancebos (em quantidade e qualidade) por um lado, como também em os manter ao
seu serviço, por outro – o que, aliás, é dramaticamente comum ao
Exército e à Marinha.
Neste
quadro, porém, os pilotos são um quebra-cabeças, não só pela
dificuldade, demora e custo na sua formação (e substituição) como pelo número
devastador de casos em que tal acontece. O problema tem décadas, sempre a
piorar, e quase ninguém tem feito seja o que for, para resolver a
questão.
As
razões que levam a que haja estes problemas no recrutamento e retenção do
pessoal têm a ver com um conjunto complexo de factores de onde ressaltam o
desprezo doa políticos e entidades estatais; fraco prestígio que os militares
gozam na sociedade; a bandalheira em que se tornou a sociedade; a péssima
informação mediática sobre os assuntos de Segurança, Defesa e Forças Armadas; a
perda aritmética dos vencimentos e regalias sociais, comparadas com as
restantes profissões consideradas “pilares do Estado”; o desregulamento dos
vencimentos/justiça fiscal da sociedade civil; actualização do risco de voo
(atenção a maioria dos militares não usufrui de complemento de risco e benefício
em tempo de serviço); estrangulamento das carreiras; falta de defesa
institucional por parte das chefias militares; quase completa paralisação da
actividade profissional militar, derivada dos constrangimentos em pessoal,
administrativos e financeiros, impostos pelos sucessivos governos – o que faz
no caso vertente, que os pilotos da Força Aérea voem muito pouco e às
vezes, mesmo nada, etc..
Muito
mais haveria a dizer mas penso que já ilustrei o ponto.
Ora
isto configura uma situação não conforme com nada e que não encontra paralelo
em mais nenhum sector da vida nacional.
Deve
ser tudo isto, desculpa para se poder usar de atitudes menos conformes à
Condição Militar? No nosso parecer não deve.
A
Força Aérea não é uma prisão como alguém (um ex piloto militar) já lhe chamou,
mas também não é uma feira onde tudo se compra e tudo se vende.
Faz
parte de uma Instituição Militar onde há regras e deontologia, derivadas da
superior qualificação das suas missões.
E
ninguém vai para lá obrigado ou lhe é ocultado os deveres, obrigações e
responsabilidades daí decorrentes. Desde o primeiro dia.
Por
isso os chefes militares – já nem falo dos políticos que estão desqualificados
– não podem continuar a atacar efeitos em vez de causas e a não quererem,
conseguirem ou empenharem-se o suficiente, para resolver um
problema que seja das FA e deixarem agravar todos, continuadamente.
Não se pode tapar o sol com a
peneira.
E no caso específico dos fogos e
não só, devem ainda ter cuidado para não se transformarem num apêndice menor,
da Protecção Civil, pondo em causa as suas missões primárias e identidade
própria!
Já
para não falar em que a prevenção e o combate aos incêndios têm que deixar de
ser um negócio, onde alguns ganham dinheiro; outros morrem; tudo seja
uma confusão e se deixe destruir e desfigurar a imagem física do país e seja
causa de desastres ambientais gravosos.
Como dizia o Bispo de Silves, está tudo um
desconserto.
O
melhor é fechar e abrir de novo.
João
José Brandão Ferreira
Oficial Piloto-Aviador (Ref.)
[1] Não sei se haverá mais
alguma norma aplicável. A demente velocidade a que se produz e altera a
legislação, raro permite a quem não é “especialista” possa acompanhar a mudança…
[2] No seu número 5 a)
especifica-se que “em caso de emergência não se aplicam os limites de tempo de
voo e do período de serviço de voos diários, podendo o comandante decidir nesta
matéria atenta a segurança das operações”. Alguém sabe explicar esta alínea?
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