sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

O “JURAMENTO DO FALCÃO”

Site dos Falcões, clicar aqui
“Há tempos de usar o olhar da coruja e tempos de voar como o falcão”.
D. João II

Costuma contar-se, em roda de amigos – e se calhar é verdade – que nunca se deve perguntar a um piloto se ele é da “Caça”.

Porque, se for, certamente o dirá; se não for, para quê embaraçá-lo?...

A Aeronáutica Militar, fundada em 1914, forma pilotos de caça há muitos anos. Sem contar com os onze pilotos que foram formados em França e Inglaterra, ainda durante a I Grande Guerra fê-lo, institucionalmente, desde 1919, com a criação do Grupo de Esquadrilhas República, na Amadora.[1]

Seguiram-se esquadras nas Bases Aéreas de Sintra, Tancos e Ota, onde a “especialização” foi ministrada.

A partir da criação da Força Aérea, em 1952, resultante da junção da Aeronáutica Militar e da Aviação Naval, inaugurou-se a era do jacto, resultante dos benefícios da nossa entrada na OTAN, com a chegada dos primeiros T-33-A e F-84-G.

Mas foi com a inauguração da Base Aérea 5, em Monte Real, em 4 de Outubro de 1959, criada especialmente para albergar a nova frota de F-86-F, que se estabeleceu, modernamente, a “escola da caça”, em Portugal.[2]

Isto porque, o F-86, conhecido na gíria por “sabre”, fora especialmente desenhado para ser um interceptor (embora cumprisse bem missões de ataque ao solo e no mar) e, também, porque se veio a criar e estabelecer um “espírito” muito especial, na esquadra 51, também ela criada de raiz para operar este novo (e moderno para a época) sistema de armas.

Foi esta esquadra convenientemente baptizada com o nome de “Falcões”.[3]

O curso era longo (e dependia ainda da taxa de prontidão dos aviões…), difícil e algo complexo. Mas era feito com alegria e entusiasmo. Durava, em média, um ano e não havia aviões bi- lugares…

Os pilotos que o frequentavam, independentemente do seu posto, eram (e são) apelidados de “abibes”[4] e sujeitos a um conjunto de praxes e tradições durante todo o curso. Numa palavra, tinham direito a pouca coisa, para não dizer que não tinham direito a nada…

Levavam, ainda, muitas “bicadas” dos mais antigos, pilotos barbados e hirsutos, que habitavam tão inolvidáveis instalações, rapidamente rebaptizadas em “palácio”. O Palácio dos Falcões!

Palácio, que tem a porta principal encimada pela frase marialva e intimidatória: “Por esta porta passam os falcões mais ferozes do mundo”.

Eu, cá por mim, estou convencido que é verdade…

É claro que as bicadas não resultavam só em “apertos de torque”, mas eram transformadas em escudos (não euros) de modo a que, mais tarde, pudessem financiar algumas folganças gastronómicas devidamente regadas a ….”JP4” (se algum restaurante se atrevesse a abrir as suas portas a tão fogosos pilotaços, é claro).

Como um verdadeiro caçador não pode andar desarmado, parte do pecúlio servia, outrossim, para regenerar o “stock” de foguetes e outros artefactos pirotécnicos, com que se treinava a pontaria em terra, mesmo sem visor de tiro!


Ao aproximar-se o fim do curso, depois de muitas horas a estudar, reflectir e discutir; briefings e debriefings e muito suor derramado a fazer todas as modalidades de acrobacia, tiro (ar/ar e ar/chão), navegação, formação, combate simulado, instrumentos, etc., era preparada a cerimónia final.

Esta cerimónia só se realizaria, porém, se após apertado escrutínio, por parte dos doutos Falcões, os abibes:

Já dessem indícios que, dos dedinhos flácidos despontavam garras afiadas; das serosidades nasais, se afirmava o bico adunco; já cresciam tectrizes e rectrizes, que sustentavam voltas apertadas com mais de quatro “Gs”; a arcadura do peito já sulcava o ar, aguentando o voo picado e turbulência severa, e os côndilos occipitais já se ajustavam a uma rotação de 360º!

Enfim, o traseiro fofo já começava a ficar calejado pelas asneiras feitas e o piar fininho tinha-se transformado num crocitar audível.

Por outro lado, os avanços na capacidade psico-motora, já permitiam a distinção entre uma formação táctica e uma “abandalhada de marcha”; conseguiam voar dentro de nuvens sem perder o chefe; entrar ao passo distinguindo os alvos dos “chaparros” e fazer tiro ar/ar, sem entrar pela “manga” dentro!

Nesta fase da sua maturação e estando já todos fartos de os aturar, preparava-se a tal cerimónia iniciática do tipo “passagem à puberdade” das tribos africanas.

Começa com um jantar (está na cara!) em que, no seu inicio, o “Falcão - Mor”,[5] profere, invariavelmente, a seguinte frase:” Determino e mando publicar que isto hoje vai acabar mal”.

Obedientes e disciplinados, que são, os presentes afadigam-se, então, a dar cumprimento ao determinado.

Entre admoestações, castigos, provas diversas, discursos e malfeitorias várias, a coisa lá vai seguindo o seu curso (escusam de estar à espera que eu conte como é, pois não conto nada).

Aos abibes que passam nas provas (e sobrevivem) é-lhes outorgado o anel, símbolo dos Falcões; o lenço da esquadra e permite-se que escrevam o seu nome na parede do balcão do bar, para o efeito reservado. Presume-se que os leitores compreenderão as razões pelas quais muitas das assinaturas sejam, até hoje, ilegíveis.

Ouvem-se “Kiaks”.[6]

Ao tempo do F-86 ainda se oferecia um emblema, o “mach buster”, prova de que quem o possuía tinha ultrapassado a barreira do som. O Sabre foi o primeiro avião no inventário da FAP a conseguir fazê-lo.

E lá começava uma vida nova para os novos Falcões ainda imberbes e tal notava-se logo: compravam uns óculos da marca “Ray Ban”, meneavam o andar e ficavam mais atrevidos a entrar ao passo nas “falcoas”!

Pois não tinham eles, conseguido entrar para o clube selecto dos “suprassumos da essência do sublime”?[7]

*****
Nenhuma unidade da Força Aérea entrou em combate aéreo, até hoje. Os únicos pilotos que tiveram essa experiência combateram durante a I Guerra Mundial e na Guerra Civil de Espanha, mas estavam dispersos em esquadrilhas francesas e espanholas.[8]

Apenas um deles morreu em combate aéreo, nos céus de França, numa luta desigual de um contra cinco. Trata-se do Capitão Óscar Monteiro Torres e, ainda, abateu um avião alemão antes de tombar. Voava um “Spad 65” e pertencia à célebre esquadrilha das ”Cegonhas”.

Portou-se bem o Monteiro Torres e nós não o devemos desmerecer. É uma referência.

*****
Quando se fala em “Forças Especiais” pensa-se, por norma, em “Comandos”, “Paraquedistas”, “Fuzileiros” e “Rangers”.

Mas um piloto de Caça é ele, também, especial. É um combatente feroz e letal. Como os Falcões.

O “Caçador” actua só, mas não isoladamente; tem que ter cabeça fria, decisão rápida e nervos de aço. Do alto da vastidão do céu – o seu domínio – ele sente-se como “dono” do mundo e leva consigo apenas o medo, arrumado cuidadosamente numa caixinha, mas sempre pronto a manifestar-se.

Convém, sem embargo, ter a noção de que o piloto de caça é apenas o elo final que cumpre a missão, para a qual é indispensável o concurso de todos os elos que compõem o complexo sistema de Defesa Aérea: o pessoal técnico e operador das estações de radar; as comunicações; o apoio à operação (meteorologia, tráfego aéreo, etc.); a manutenção das aeronaves; o armamento; as infraestruturas aeronáuticas; a organização do Comando e Controle e da tomada de decisão e mil e uma outras minudências.

Ter tudo isto a operar bem não está ao alcance de qualquer Força Aérea. Direi até, que são muito poucas as que o conseguem fazer.

A FAP, com meios limitados, é certo, está capacitada para cumprir esta missão de um modo militarmente eficaz. Mas as ameaças para que o deixe de conseguir fazer a curto prazo, são muito severas.

Em primeiro lugar por motivos financeiros conhecidos – todo o sistema de Defesa Aéreo, apesar de estar optimizado (aqui só há mesmo “bife do lombo”) é caro e não tolera falhas nos diferentes “elos”.

E voar um F-16 tem outras exigências estranhas ao F-86, que já de si exigia muito treino.

Existem dois patamares a considerar: o número de horas de voo mínimas para a proficiência táctica, e a segurança da operação. O valor da vida de um piloto mantêm-se como sempre, a Segurança da Nação, nem por isso, e o preço das aeronaves subiu em flecha. Até onde é que se quer ir (descer)?

Vender aviões, como se pretende, aparenta ser um erro de visão tremendo.

Vejamos: adquirir e manter um sistema de armas, sobretudo do nível de complexidade e exigência como o F-16, é uma operação muito dispendiosa, difícil e demorada. Depois, para se amortizar o melhor possível, o investimento, deve tentar-se explorar os meios o máximo de tempo possível, com a melhor prontidão.

Ora Portugal não vai ter condições para adquirir aviões idênticos nos próximos 50 anos…

É preferível colocar os aviões que não se quer operar na “naftalina” do que desfazermo-nos deles.

Às FAs portuguesas apenas restam pouquíssimos meios dissuasores credíveis. Os F-16 que restam são parte desses meios. E nunca se sabe o dia de amanhã.

*****
A Aviação de Caça representa o chamado “elemento nobre do Poder Aéreo”, aquele que melhor fundamenta e justifica a independência da Força Aérea como Ramo independente.

E é aquela que garante a vigilância e defesa do espaço aéreo nacional, que é um função vital de Soberania, apesar de a mesma estar, na Europa (e apenas nela) a ser tratada, irresponsavelmente, como coisa menor ou ultrapassada.

São pois as “asas com a cruz de Cristo” quem cumpre essa missão. O símbolo da Cruz de Cristo não está lá por acaso. Meditem nisso.[9]
*****
Por outro lado as duas esquadras existentes perdem, constantemente, pilotos para as companhias civis (e não quer dizer que não haja também problemas noutras especialidades).

É um problema antigo que nunca foi devidamente equacionado.

Saem pelo dinheiro; porque voam pouco; por falta de reconhecimento social; para terem uma vida mais estável, com mais benefícios, menor risco, mais direitos e menos deveres.

E, ainda, por terem desenvolvido, no mais das vezes, uma ideia muito critica (nem sempre bem aferida) da realidade que conhecem da Força Aérea, ao mesmo tempo que têm uma ideia pouco completa da vida de “empregado” (agora chamam “colaborador”) numa empresa civil.

Enfim, saem por mais isto ou aquilo.

O modo como as coisas se passam é mau para todos (menos para a aviação civil), sobretudo para o país no seu todo, por razões que não vou aprofundar.

Depois de saírem, a maioria vai sentir falta da camaradagem e do “convívio” da esquadra – uma realidade que nunca mais vão encontrar – vão deixar de sentir a adrenalina do combate aéreo; de largar armamento; a liberdade da acrobacia; a auto-satisfação do voo meticuloso e preciso da formação; o sereno gozo de trazer o “asa” em formação cerrada, até à doce pista, em mínimos meteorológicos; a diversidade de missões que jamais geram o tédio e o gosto de comandar que é o fulcro e a essência de toda a actividade militar.

Vai restar-lhes o eventual conforto da conta bancária (o que não é despiciendo), e a visita a locais porventura mais agradáveis do que um esburacado teatro de operações, em locais recônditos.

Espera-se que quando, e se, for necessário defender o ninho onde foram criados, estejam de novo em alerta de 15’, para de novo o fazerem.

Os avanços têm sido muitos, mas a organização, a tecnologia, a logística, a táctica, etc., de pouco valem se a base espiritual estiolar e não se mantiver ao nível do resto.

O último Juramento de Falcão – para onde são convidados todas as “aves” ainda vivas, cerca de 250, e a que poucas, infelizmente, respondem à chamada – contou com três derradeiros abibes.[10]

De facto os cursos estão interrompidos e a renovação parou. Os leitores já, por certo, entenderam porquê.

“Falcões Brancos” check in!
Two!
Three!
Four!
Branco One.



[1] DL nº 5/41, de 15/2; estava equipada co cinco caças Spad 188. A Escola de Aeronáutica Militar tinha, entretanto, sido formada em Vila Nova da Rainha, em 1916, com a missão de brevetar os futuros pilotos militares.
[2] Começaram a chegar em 1958, tendo sido adquiridos um total de 65 aviões.
[3] E não eram uns falcões quaisquer, eram os “Falcões Peregrinos” – “Falcus Peregrinus Tunst”- o caçador mais completo e temível, na família daquelas aves rapaces…
[4] O nascituro de um casal de falcões.
[5] Comandante da Esquadra.
[6] Grito dos Falcões.
[7] “Clube” que não é “secreto”, nem se dedica a traficar influências, conluir estratégias de poder, proceder ao escambo das consciências ou combinar negócios, entenda-se.
[8] Durante a IGM chegaram a combater nas esquadrilhas francesas 30 pilotos e mecânicos. Onze pilotos e um mecânico, da Aeronáutica Militar foram autorizados a alistar-se na Aviação dos Nacionalistas (embora outros civis o tenham feito). Não há notícias de pessoal da aeronáutica que tivesse combatido pelo lado republicano.
[9] Felizmente ainda não apareceu nenhum cretino esférico a defender que essa cruz deve ser substituída por outra coisa qualquer, por poder “ofender os seguidores de uma religião diferente”…
[10] Fez o seu juramento um major da USAF (que se portou à altura), mas que não entra nestas contas.

2 comentários:

joaquim disse...

Caro Brandão Ferreira

Gostei de ler e de algum modo senti-me envolvido nessa nobre raça dos Falcões.

Com efeito, com orgulho o digo, fiz um voo num A7-P, da Esquadra dos Falcões ao tempo em que tu eras o Comandante de Esquadra!

Mais não digo, pois deixo-te um link para a história desse voo, contada um pouco humoristicamente, não por desrespeito, mas pelo imenso orgulho que tenho no que foi dado fazer.



http://www.tabancadocentro.blogspot.pt/2012/12/a-boleia-no-7.html



Não me esqueço, obviamente, da promessa do Jaime Brandão e tua, de um eventual "ingresso" como Falcão honorário!


Um grande e amigo abraço, com os votos de um Novo Ano de preferência melhor do que este

Joaquim Mexia Alves

joaquim disse...

O meu comentário anterior, lembrou-me o lenço da Esquadra que então me foi oferecido.

Fui procurá-lo e, obviamente, logo o encontrei.

Faz parte dos meus "roncos", (como se dizia na Guiné), que guardo "religiosamente".

Mais um abraço
Joaquim Mexia Alves