O GUARDA - CHUVA
DA FORÇA ÁEREA
01/11/20
“Chuva civil não molha militar”.
Da gíria castrense.
Põe-se
uma questão que é esta: a chuva mesmo sendo “civil” (um fenómeno meteorológico
não existente, dado só existir “chuva”), molha militar ou não? Molha, ai não
que não molha!…[1]
Ou seja, molha no sentido
real do termo; porém, metaforicamente, quando aplicado aos militares portugueses
(até agora) não molhava; imbuídos então deste espírito, a chuva não molhava
mesmo que os enregelassem até aos ossos!
Esta assunção entrou na
psicologia colectiva que os diferenciava e o termo “civil”, aparece como chiste
e para tornar efectiva essa diferenciação.
Mas a ideia que presidiu
aos antigos (já ninguém tem ideia de como estas coisas apareceram e passaram a
fazer parte da “praxis” militar) para nunca se terem lembrado ou querido, que
houvesse um chapéu - de - chuva da “ordem” foi a de preparar psicologicamente
as tropas para a dureza do combate, finalidade última da sua existência.
Lembrou-se agora o Comando
da Força Aérea (certamente inspirado na Força Aérea americana), de colocar em
causa esta “centenária” tradição castrense e tal fez espoletar, sobretudo nas
conversas e nas redes sociais, um estado de indignação e vitupério, raramente
visto, mesmo quando em confronto com decisões muito mais gravosas, até de lesa
- Pátria, com que amiúde somos brindados. E, valha a verdade, que o ocorrido
tem, outrossim, o apoio ou a indiferença de uns poucos.
É certo que a circular
(nem sequer é directiva) possui salvaguardas importantes, relativamente à
restrição do uso do guarda - chuva em situações que seriam de todo
impraticáveis, mas nem isso travou a agitação das mentes e a gozação quase
geral.[2]
Para tal concorreu
bastante o facto do Comando da Força Aérea ter cometido dois erros à cabeça:
não ter justificado a necessidade deste novo “item” e não ter discutido o
assunto com os outros Ramos e até, com a GNR.
É certo que cabe nas
prerrogativas do Chefe de Estado-Maior da FA mudar o fardamento do seu Ramo,
mas a decisão extravasa o limite do mesmo, por ter a ver com a “imagem”
tradicional do militar e tal não se confinar à Força Aérea. E note-se até, que
a PSP, sendo civil (por exemplo) também não é contemplada com tal artefacto...
Mas aquilo que
achei mais “notável” - e é essa a razão que me levou a dar-me ao trabalho de
escrever este arrazoado - foi a de que quase todas as pessoas com quem falei
sobre o assunto (e estavam contra) não conseguirem aduzir qualquer argumento
sério que consubstanciasse a sua indignação.
Tão pouco os
que são a favor, à excepção da evidência, que o guarda - chuva ajudaria a
proteger os militares das intempéries, “máxime”, evitar uma valente gripe.
Apesar do
argumento elaborado em termos de adequação militar, será o de afirmar, que a
preservação da saúde física e mental do militar se irá repercutir no seu
desempenho em combate (ou até no dia-a-dia).
Basta ver, por
exemplo, que tivemos mais mortos por doença na campanha em Moçambique durante a
I GM, do que no campo de batalha. Apesar da ausência ou não, de guarda - chuvas
no equipamento da altura não teria, seguramente, influenciado as baixas ocorridas…
Ora em
qualquer actividade humana e por maioria de razão, no âmbito militar, as
decisões não podem (ou devem) ser tomadas porque sim, ou porque não. Deve haver
uma racional que as suporte e uma mais-valia a obter. Isto, claro, desde que
não ponha em causa princípios ou doutrina existentes.
Ora, é sobre
estes aspectos que o consciente e inconsciente individual e colectivo, não
conseguiu raciocinar com um mínimo de serenidade e objectividade.
Aparentemente
as pessoas, onde naturalmente se destacam os militares, ao serem colhidas de
surpresa pela medida ficaram espantadas e reagiram quase automaticamente a algo
que vai contra o seu imaginário a que não se pode desligar algum sentimento de
ridículo quanto à situação.
A esmagadora
maioria dos militares no meio dos seus comentários, indica invariavelmente o
“até parece que não há nada mais importante para resolver”...
Não queria ir
por aqui, já que tal é lateral e circunstancial à questão e, ainda, por nessa
ordem de ideias não se poder tratar qualquer questão que não estivesse
hierarquizada pelo grau de importância. Mas entendemos o sentido da
argumentação.
Visto sobre outro prisma, a negação “tout
court” da introdução do guarda - chuva na indumentária militar, seria o mesmo
que negar qualquer tipo de evolução. Ora se houve coisa que nunca parou de
evoluir foi o tipo de uniformes e restante equipamento individual do
combatente.
As casacas do
século XVIII, por exemplo, tinham três ou quatro grandes botões na parte
correspondente ao antebraço. Tal destinava-se a dissuadir os seus utentes a
assoarem-se nas repectivas mangas...
Do mesmo modo
a aba traseira da casaca ou capote, tinha duas rachas com duas casas no seu final
e encimadas por dois botões, o que permitia segurar a aba dobrada em cima, de
modo que o militar pudesse fazer as suas necessidades fisiológicas sem sujar o
uniforme...
Na Primeira
Guerra Mundial (e não só) muitos oficiais usavam uma bengala, por razões
várias. É célebre a foto do General Tamagnini, Comandante do Corpo Expedicionário
Português na Flandres, apoiado na sua. Hoje em dia não passa pela cabeça de
ninguém usar bengala e o bengalim é apenas uma tradição residual cavaleira.
Pode ainda
argumentar-se que a seguir a este passo do guarda - chuva, se deveria também
usar “galochas” (o que por acaso já existiu), ou um outro qualquer artefacto
que se queira inventar, colocando-se a questão da “fronteira”, isto é, até onde
se deve ir.
As próprias
cerimónias que envolvem formaturas por vezes também são adiadas quando há
ameaça de mau tempo ou transferidas para um recinto coberto.
E consta que
na tropa italiana quem está formado, começando a chover, pode debandar, sem
ordem de ninguém. (mas enfim desde o fim do Império Romano que os exércitos da
Península Itálica não são grande exemplo a seguir...).
Por outro lado
um militar deslocando-se em espaço aberto anda obrigatoriamente com a cabeça
coberta (e pode usar gabardine), quer seja com boné, boina, bivaque, quico ou
capacete e tal já constitui uma protecção contra a fúria dos elementos. [3]
Mas tal
protecção é parcial, argumentar-se-á: o mesmo se aplica ao guarda - chuva, pode
retorquir-se, já que não evita que todo o corpo se molhe.
Enfim, creio
que já ilustrei o ponto.
Qual então a
conclusão a tirar disto tudo?
Pessoalmente
estou em crer que a (pequena) vantagem que o despacho do CEMFA, de 2 de Outubro
possa trazer, é bastante inferior aos inconvenientes daí derivados - a começar
pela polémica gerada - e que tem a ver sobretudo com a imagem que o militar tem
de si e que a população em geral dele tem.[4]
Recorde-se as
críticas que caíram sobre o General Carlos Azeredo enquanto Chefe da Casa
Militar do PR, fardado de General, abrigava o então inquilino de Belém, debaixo
de um guarda - chuva...
O uso de
guarda - chuva quebra inquestionavelmente a marcialidade (e a “cagança”) que é
apanágio de um militar [5];
além de ser de muito mau tom fazer-se continência de guarda - chuva aberto ou
ver um Cabo a “dar boleia” a um Coronel debaixo de um artefacto destes, ou
vice-versa.
Também não é
despiciendo tal praxis na preparação psicológica para as agruras da vida
militar representando, finalmente, uma tradição de sempre, onde não se
evidencia qualquer malefício. Faz bem ao Moral das tropas; é um ponto de
instrução; dispõe bem e é uma marca identitária. Finalmente vai contra a
“paisanice” reinante.
Um outro
aspecto ressalta - e creio não me enganar - das reacções havidas, os militares,
por um conjunto alargado de razões, estão tão zangados com o que se passa à sua
volta, nomeadamente dentro da Instituição de que fazem ou já fizeram parte,
estão tão causticados pelo modo como têm sido tratados como pessoas,
profissionais e servidores do País, que reagem a pés juntos a qualquer coisa
que se passe e descrentes de tudo.
São assim como
a floresta portuguesa no pino do Verão, à espera de uma fagulha que a
incendeie.
E quando a
situação fica assim, é normalmente por uma tolice qualquer menor, que se detona
uma carga explosiva que ninguém está à espera que rebente.
E, no entanto,
rebenta.
É preciso
pensar com a cabeça e não com o coração (embora as emoções não sejam
obrigatoriamente más). Algo difícil na natureza humana.
João José Brandão Ferreira
Oficial Piloto-Aviador (Ref.)
[1] Por
alturas de 1970/1, creio, que no final de uma cerimónia de abertura solene de
aulas na Academia Militar, presidida pelo então PR Almirante Américo Thomaz,
duas companhias de alunos, comandadas pelo Comandante do Corpo de Alunos,
Coronel Carmelo Rosa (de saudosa memória) estava formada na parada para prestar
honras de despedida ao Chefe do Estado. Chovia desalmadamente.
O Chefe do Estado
esqueceu-se ou assim não entendeu, dispensar as honras e demorou a sair,
entretido que estava a conversar ou a ver se a chuva parava.
A formatura escorria água,
mas não mexia uma palha (podiam até “chover” picaretas...).
Então o Coronel Carmelo
Rosa entregou o comando da formatura ao oficial mais graduado a seguir e
caminhou direito ao Almirante Thomaz que estava à entrada do ginásio, onde
decorrera a sessão solene. Postou-se em frente a ele, apresentou armas, abateu
espada e tonitruou: “V. Exª Sr. Presidente dá licença que mande destroçar? Não
vê o estado em que estamos?”. Outros tempos...
[2] O guarda - chuva só pode
ser usado com uniforme nº 1 ou nº 2 e sem ser em formatura. E não pode pôr em
causa a saudação militar, vulgo continência.
[3] O
boné até possui um francalete por cima da pala que pode ser utilizado por baixo
do pescoço evitando assim que o vento o leve. Prática que caiu em desuso; à
excepção da Armada, onde ainda é muito utilizado na faina a bordo. Se assim não
for é muito fácil que o boné fique sepultado nas profundezas do mar...
[4] E também não se entende um
“item” que passa a fazer parte do uniforme, não seja distribuído, mas tenha de
ser pago…
[5]
Vide, por exemplo, que as golas apertadas e a própria pala do boné servem para
que os militares andem com a cabeça levantada.
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