segunda-feira, 18 de novembro de 2019


O PIÃO MILITAR DAS NICAS DA MADEIRA
17/11/2019

 “Todas as coisas por força imortal
De perto ou de longe
Secretamente
Umas as outras estão ligadas.
Assim, não podes tocar uma flor
Sem perturbar uma estrela.”
Francis Thompson

                Para uma cabal compreensão do que levou à demissão inglória do último Comandante Operacional da Madeira, Major General Carlos Perestrelo, filho de um considerado oficial piloto da “velha guarda” da Força Aérea, temos que recuar mais de dois anos.
                Nessa altura o Chefe de Estado-Maior da Armada foi de parecer que o Comandante Operacional da Madeira, cujo lugar era cativo do Exército, passasse a ser rotativo pelos Ramos.
                O assunto foi levado a Conselho de Chefes Militares e chumbado por votação contra do Exército e do então CEMGFA (também do Exército), que goza de voto de qualidade.
                De facto a legislação existente, DL 184/2014 de 29 de Dezembro (Lei Orgânica do EMGFA), nomeadamente o seu artigo 53, prevê que as Forças Armadas na Região Autónoma da Madeira se articulam da seguinte maneira:
                O Comandante Operacional da Madeira (COM), (um oficial general de duas estrelas) que depende directamente do CEMGFA, acumulando o cargo de Comandante da Zona Militar da Madeira (ZMM) (cargo de um oficial general de uma estrela) e a esse título dependendo directamente do Comandante Operacional das Forças Terrestres que por sua vez depende do Chefe de Estado – Maior do Exército (CEME).
                O sistema de forças militar existente no Arquipélago é quase simbólico (como de resto em todo o território nacional): A Marinha tem uma Zona Marítima cujo Comandante (um Capitão de Mar e Guerra) acumula com a função de Capitão de Porto (que por sua vez superintende no porto de Porto Santo), com uma lancha de fiscalização e pessoal da Polícia Marítima e ainda um patrulha (pequeno) num total de cerca de 130 elementos (destacam para as Selvagens dois elementos em permanência); a Força Aérea tem o Aeródromo de Manobra nº 3, em Porto Santo, com um pequeno módulo de comando e dois destacamentos (nem sempre) permanentes respectivamente das Esquadras 502 e 751 da Base Aérea Nº 6 (Montijo), com um C-295 (avião de transporte táctico) e um EH101 (helicóptero para busca e salvamento e transporte táctico). Possui ainda a Estação de Radar Nº 4, somando tudo cerca de 70 militares e civis.
                Todas estas forças dependem dos respectivos Comando Naval (Alfeite) e Comando Aéreo (Monsanto).[1]
                As forças do Exército, para além do Comando da Zona Militar são constituídas por um Regimento de Guarnição no Funchal totalizando cerca de 600 homens. Este regimento tem o encargo operacional de aprontar um Batalhão de Infantaria e uma Bataria de Artilharia.
                O Comandante Operacional da Madeira não comanda directamente qualquer força, a não ser quando lhe são atribuídas, nomeadamente para exercícios, o que acontece por norma, duas vezes por ano aquando do exercício de nome “Zarco” onde participam os três Ramos (e normalmente só lhe atribuem forças terrestres).
                Tirando isso o COM tem sobretudo funções de Protocolo e Relações Públicas e de articulação com os órgãos regionais da tão decantada Autonomia.
                Ou seja, a maior parte do tempo e trabalho do COM será passado como Comandante da Zona Militar, de onde aliás, recebia todo o apoio logístico necessário às suas funções “bicéfalas”.
                Aqui deve abrir-se um parêntesis para lembrar que a Madeira é uma espécie de “aldeia grande”, com vários grupos sociais e políticos que têm as suas divergências e conflitos de interesses, ideológicos ou de “feitio”, e por vezes se digladiam com mais ou menos acinte.
                O Comandante Operacional deve pois, usar de grande prudência não só nas suas relações institucionais, como na sua vida social, garantindo uma independência e neutralidade relacional, o mais equilibrada possível.
                E mesmo assim será difícil ficar imune a alguma intriga.
                Ora, entretanto, mudou o CEMGFA, sendo o cargo ocupado pelo anterior Chefe de Estado – Maior da Armada.
                A legislação relativamente ao cargo de COM tinha o carácter de “transitória” e especificava que se poderia alterar a regra de ser exclusivo do Exército caso houvesse uma mudança no dispositivo que o justificasse.[2]
                Supostamente para este efeito obteve-se, por Despacho do Secretário de Estado Dr. Perestrello - ainda na gestão do Ministro que confessou não saber o que era um paiol, e estava ausente - em que se acrescentava ao dispositivo um navio hidrográfico. Está datado de 10 de Agosto de 2018.
                Porém a proposta efectuada acrescentava em género de nota, que a situação seria em “reforço sazonal”, o que contrariava o Decreto-Lei, que obriga a uma mudança de dispositivo “com carácter permanente”.
                Deixa-se ainda á consideração dos leitores se um navio hidrográfico, que tem de guarnição cerca de 20 homens e não é capaz de disparar um tiro, pode ser considerado uma mudança no dispositivo. Se é que era essa a intenção.
                De seguida houve outro Conselho de Chefes Militares (CEM) que votou agora favoravelmente, apenas com o voto contra do actual CEME – que o cargo de COM, passaria a rodar pelos Ramos. O que obrigaria a nomear um outro oficial general para a ZMM, quando o COM não fosse do Exército.
                Cabe aqui ainda referir que existe ainda um outro argumento para tornar o cargo rotativo que tem a ver com o facto de um oficial de patente superior não dever exercer funções de posto inferior.
                Convimos em que o argumento tem alguma justificação embora não seja de todo impeditivo (por uma questão deontológica), já que o cargo é exercido em acumulação de funções sendo que a função principal corresponde ao posto de duas estrelas.
                Não havendo acumulação as Forças Armadas, no seu conjunto, “ganham” um lugar de oficial general, devendo notar-se que a Força Aérea não dispõe de uma “Zona Aérea”, podendo colocar-se a questão, então, se a Zona Militar e a Zona Marítima se justificam, ou se a FA não deve ter também uma Zona Aérea...
Não vou agora discutir se o cargo deve ser rotativo ou não. Quem de direito que o faça e se entenda. Não o faço também, não por não ser importante, mas porque não é fundamental ao objecto deste escrito. Mas creio que tanto uma decisão destas, como de mudança de dispositivo ganhava em ser analisada em Conselho Superior de Defesa Nacional.
              E convém ter sempre em mente que as Missões, Dispositivo e Sistema de Forças, derivam do que está especificado no Conceito Estratégico Militar.
                Estando o caso neste pé e apesar de não ter havido qualquer alteração na Lei, talvez porque ela própria se considerava “transitória”, planeou-se a substituição do Major General Perestrelo, por um Contra Almirante, para o dia 4 de Novembro, data em que aquele oficial atingia o limite de idade para passar à reserva.
                Por razão de agenda e necessidades pessoais, a cerimónia de transmissão de comando foi marcada para 19 de Novembro, estando previsto que a mesma fosse presidida pelo actual Almirante CEMGFA.
                Porém, a 24 de Outubro último, caiu como uma bomba a notícia de exoneração do COM e a sua substituição imediata pelo Almirante Dores Aresta, que tomou posse em Lisboa e seguiu de imediato, para o Funchal, regressando logo de seguida.
                Tal foi acompanhado por dois oficiais enviados para procederem a averiguações e a prepararem a ida do novo COM.
                O que terá levado a que tal sucedesse?
                No dia 23 de Outubro foi publicado no Diário de Notícias da Madeira – órgão conotado com a oposição política ao Governo Regional – um artigo do Subdirector Roberto Ferreira (que chegou a ser assessor de imprensa do Ministro dos Negócios Estrangeiros entre 1998 e 2002) em que dava conta de que tinha havido participação de militares num torneio de golf no Santo da Serra onde se teria disparado um tiro de canhão de pólvora seca, por um civil.[3]
               Por coincidência decorria a semana em que se comemorava o “Dia do Exército”.
                O artigo foi replicado em Jornais do Continente, passando a correr na “net” um vídeo documentando o ocorrido.
                Tal facto fez, pelo que se percebeu pelas notícias vindas a público, espoletar a demissão do Major General Perestrelo alegando, uma nota oficial do EMGFA, que o que se passara não era do seu conhecimento, condenando implicitamente tal procedimento.
                Na sequência o CEME demitiu o oficial de Comandante da ZMM, após alguma relutância.
                O COM é apanhado, aparentemente, de surpresa e fica estupefacto.
                O Governo Regional elogia publicamente a postura e o desempenho do Major General Perestrelo, no que é acompanhado por outras entidades.
                No dia 5 de Novembro, um dia depois de ter passado à situação de reserva, o deposto COM emite um comunicado (não usual) em que se defende, elogiando o seu trabalho, mostrando estranheza pelo acontecido, afirmando que tudo fez com conhecimento do Comando do Exército e pedindo apoio para a nova equipa.
                Não houve reações oficiais, para já, a tal comunicado.
                O Major General regressa ao Continente no dia 18 de Novembro.
                Este desenrolar de eventos levanta uma série de questões que não têm resposta fácil.
                Em primeiro lugar, após longo período preparatório para se alterar o “status quo” existente no Comando das Forças Armadas na Madeira – como acima relatado – parecia que tudo estava concatenado para que a saída do então COM (que tinha tomado posse a 27 de Maio de 2017) e a sua substituição se processasse do modo mais normal possível.
                Ora algo de grave teria que se ter passado para que a 12 dias do COM passar à reserva – oficial com uma boa folha de serviço e sob quem nunca pesou qualquer atitude menos própria – e a 19 dias da cerimónia de transmissão de comando, se tenha alterado tudo isto!
                O que veio a público revela que a causa determinante do “despedimento” foi a notícia saída no Diário de Notícias da Madeira. Mas seria que o relatado em tal notícia era suficientemente grave para justificar este pequeno terramoto?
                Vejamos: os factos referiam-se a 6 de Outubro de 2018 (um ano atrás); o obus disparado era uma peça de museu; o disparo foi perfeitamente enquadrado (o cartucho de pólvora seca custa 40 euros…); o evento foi realizado numa perspectiva de divulgação da imagem do Exército no âmbito do recrutamento de voluntários – cuja maior responsabilidade é política e que até hoje tem sido descartada sumariamente para cima dos Ramos (!) - o que justifica a presença dos escassos meios militares. E também ao que se lê no comunicado do ex- COM, integrado no “Programa Dom Afonso Henriques” que visa promover as actividades de natureza cultural, recreativa e desportiva.
                A não ser assim, como se pode justificar as recriações de feiras, torneios, batalhas, cercos e outros eventos de carácter militar de antanho que se fazem um pouco por todo o lado e onde por vezes colaboram os Ramos das FA e a GNR? O navio “Creoula, da Armada, não “passeia” jovens? A Força Aérea não faz baptismos de voo a civis?
                E se tal actividade foi autorizada pelo Comando do Exército como se pode entender que o COM seja o único visado? Ninguém assume responsabilidades?
                Fala-se que existe um ou mais processos de averiguações a decorrer. Mas então pune-se um oficial general (ou a demissão pública de uma alta função não é de “per si”, uma punição?), sem se saber o resultado do (s) mesmo (s)?
                Ademais – e nem a propósito – lê-se no último número da Revista da Armada, a páginas 32 – uma notícia sobre a deslocação a França de uma equipa de golfe dos três Ramos das Forças Armadas, ao “7th European Military Championship Golf France 2019”, sob a égide do International Military Sports Council (CISM) onde participaram sete militares no activo (três da Marinha, dois do Exército e dois da Força Aérea). Será que vão ser punidos?
                E tentar justificar-se a demissão do COM, por causa do que se passou com os paióis de Tancos (como por aí apareceu escrito) por uma questão de imagem junto da opinião pública, parece-nos ser um bocado como confundir a beira da estrada com a estrada da Beira…
                Finalmente invocar que o COM não informou o CEMGFA também nos parece forçado, não só por se tratar de uma minúcia (no âmbito da actividade geral) como ser estranho que um Major General não tenha competência para determinar uma acção como a descrita. A ser assim, tem autoridade para quê?
                Por isso estamos convencidos de que o que se passou nada tem a ver com o relatado.
               Todavia não deixa de ser pertinente saber porque é que saiu a notícia de um evento passado há um ano num jornal diário - que raio de actualidade é que transmite? E se tal saiu da cabeça do autor da notícia, ou teve um ou mais inspiradores.
                E seria o Major General Perestrelo vítima de alguma intriga de ilhéus? Com eventuais ligações ao Continente?
                Atentemos noutros factos.
                São conhecidos do anterior tomadas de posição de políticos ligados ao Governo Regional – até estas eleições, dominadas exclusivamente pelo PSD – em que se mostram contra a existência de mais do que um oficial general nas antigas “ilhas adjacentes”.
                Sabe-se ainda de um conflito havido há uns anos entre o então Presidente do Governo Regional e o Capitão do Porto do Funchal – em que de resto este último tinha razão – e o menor apreço que desde então, tal político devotou à Armada, e sabe-se que nos primeiros dias do mês de Outubro, as autoridades madeirenses, seguramente após saberem da alteração projectada, fizeram saber para Lisboa o desconforto que sentiam pelo “reforço do comando militar”, que possivelmente encaram como “mais uma inadmissível ingerência da República na Autonomia Regional”…
                Ora as questões de Segurança e Defesa Nacional ultrapassam o âmbito autonómico regional, por se tratarem até, de questões de soberania. E se algo existe no estatuto autonómico, que possa levar a alguma dúvida neste âmbito, tal deve ser extirpada, ontem!
                Ora, no âmbito tratado, nada existe que possa melindrar eventuais sensibilidades locais, tratando-se apenas de visões diferentes que os ramos das FA têm no encarar este problema.
                Sem embargo de se dever tratar todos estes assuntos com prudência política e bom senso no relacionamento institucional.
                Porém a intervenção madeirense através de canais políticos, deve ter feito soar algumas campainhas de alarme no sentido de poder torpedear a planeada substituição de um oficial do Exército por um da Marinha e, por essa via, ter de ser nomeado mais um general de uma estrela do Exército para Comandante da ZMM.
                Daí ter que se arranjar um pretexto para se retirar rapidamente o COM e substitui-lo por outro, ter de ser encarado como verosímil.
                Passava a ser um facto consumado.
                Daí, ainda, a rapidez de toda a actuação, o que levou inclusive a que o Conselho de Chefes necessário para a exoneração do COM, não se tenha realizado (a não ser eventualmente por telefone), apesar de ser obrigatório e venha referido no despacho do Ministro da Defesa de 23 de Outubro que exonera “de jure” o referido oficial. [4]
                A hipótese aventada ainda é reforçada pelo artigo intitulado “A Tancareira” da autoria do Dr. Alberto João Jardim, e publicado no Jornal da Madeira, de 11 de Novembro (e não no Diário de Notícias da Madeira...).
                Nele se critica a solução proposta (o mesmo já tinha acontecido em artigo publicado em Fevereiro de 2018), se faz alusões a “interferências de sociedades secretas” – talvez a PGR nos possa vir a elucidar sobre isto - e se fala a desproposito em “colonialismo” de Lisboa. Como é, aliás, seu (mau) hábito.
                Convinha que os militares não se deixassem enredar em rodriguismos políticos nem em deixarem-se cair em comportamentos “autofágicos”, que só têm ajudado a levar a Instituição Militar para a desgraçada realidade em que se encontra.
                Para azar do Major General Carlos Perestrelo estava (por um triz) no lugar errado, na altura errada e estando na posição da estrela, foi derrubado por uma flor, como diria o Thompson.
                Mas parece-me, e espero que não me pareça só a mim, que não se deve sujeitar (?), sacrificar (?), humilhar (?) um oficial digno com 40 anos de serviço, a meia dúzia de dias de passar à reserva por causa de uma situação à qual, supostamente, é alheio.
                Na vida não pode valer tudo.

                                                     João José Brandão Ferreira
                                                     Oficial Piloto Aviador (Ref.)



[1] O Comandante da Zona Marítima depende ainda do CEMA na sua qualidade de Autoridade Marítima…
[2] DL 184/2014 de 29 de Dezembro, Artº 53-3: 3. A acumulação das funções de Comandante Operacional da Madeira com as de Comandante da Zona Militar da Madeira, prevista pelo artigo 37 do DL nº 234/2009, de 15 de Setembro, cessa com a nomeação do Comandante Operacional da Madeira, nos termos da lei, após a alteração com carácter permanente, da tipologia de forças atribuídas.”

[3] Deve dizer-se que foi sempre “tradição” na Madeira, haver uma relação “aberta” entre a imprensa e as autoridades militares para esclarecimento de questões ou notícias sensíveis.
[4] Conforme previsto na Lei nº 6/2014 de 1 de Setembro, Artº 24: 4. Compete ao MDN sob proposta do CEMGFA, ouvido o conselho de chefes militares, nomear e exonerar os titulares dos cargos seguintes da estrutura do EMGFA: b) Comandantes dos Comandos dos Açores e da Madeira.


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