A propósito do dia 1/1, dia mundial da Paz. Cumpts e bom ano!
“Sim é um belo programa de vida. Outra coisa queria eu fazer senão viver vida despreocupada de paixões e bens mundanos. Andar por aí ao acaso, sem cuidados, a trocar sorrisos e gestos de bondade com outras criaturas, mas isso é um sonho. Enquanto olhamos os lírios descarnados e inertes, os lobos vêm e nos devoram… Odeio a violência mas como não exercê-la contra aqueles que não conhecem outros meios senão os da agressão e da brutalidade”.
Erico Veríssimo, in “Olhai os Lírios do Campo”
A Paz é um tema de sempre, pois sempre o homem procurou a paz; mas, por outro lado, também sempre procurou a guerra. Dá ideia até, que Paz e Guerra existem em contraponto. A Paz é o contrário da Guerra, ou só nos preocupamos com a Paz porque existe Guerra. Talvez a Paz e a Guerra representem uma das faces da eterna luta entre o Bem e o Mal…
E esta (luta) tem a ver com a dimensão humana e com a Paz interior. Comecemos pela primeira.
Convém definir o termo (o que é a Paz), e para tal socorremo-nos de Santo Agostinho (civ: 10,13), que afirmou que a “Paz é a tranquilidade na ordem”. É, pois, viver sereno mediante um conjunto de regras. Resulta assim um equilíbrio que se pode desfazer facilmente caso quem impõe ou escolhe as regras, não o faça adequadamente face às pessoas e às situações…
Por outro lado podemos convir em que a Paz sem Direito não é Paz e que a Paz na injustiça é opressão. De tudo resulta o corolário de que a Paz não pode e não deve ser obtida a qualquer preço e de qualquer maneira. A Paz não pode ser uma abdicação como é exemplo o slogan existente no auge da campanha pacifista levada a cabo pela União Soviética contra o Ocidente nos anos 80 do século XX: “vale mais vermelho do que morto”.
Recordo as palavras de Raoul Girardet: “Os sucessos pacifistas, enfraquecendo a capacidade de resistência das sociedades ocidentais, podem precipitar os riscos de guerra, em vez de a evitar”.
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A origem da Guerra está descrita na bíblia “brota no coração de Caim, vítima da semente do pecado de seus pais”. E, como afirma João Seabra em “Os Cristãos face à violência”: “todas as formas de violência que houve, há; e nenhum mal pertence definitivamente ao passado”.
A Guerra é, pois, um fenómeno social, que mais de perto tem acompanhado a vida da Humanidade e não se vislumbra a sua erradicação da face da terra.
O centro do fenómeno é o Homem!...
A dissuasão, exemplarmente ilustrada no aforismo latino “se vis pacem para bellum”, tem sido até à actualidade o único meio eficaz para evitar conflitos directos e o melhor exemplo disso foi a Paz na Europa durante 50 anos após a II Guerra Mundial, facto inédito na sua História.
No entanto, se a dissuasão evita a guerra não promove, de per si, a Paz já que, baseada na ameaça impede a confiança. Obriga ainda à imobilização de recursos avultados para ser eficaz e, por outro lado, a dissuasão nuclear entre países ou blocos não evitou a deflagração de dezenas e dezenas de guerras civis e entre estados e coligações de estados enquanto vigorou.
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O tema da Paz é recorrente no 5.º Mandamento da Lei de Deus: “Não matarás”, Êxodo 20,13 e Mateus 5,21-22.
No Sermão da Montanha o Senhor lembra o preceito (não matarás), e acrescenta-lhe a proibição da Ira, do Ódio e da Vingança. E exige dos seus discípulos que “ofereçam a outra face”, e que amem os seus inimigos. "Felizes os obreiros da paz, porque serão chamados filhos de Deus”, disse S. Mateus, (5,9).
A Cólera é um desejo de vingança. “Desejar a vingança, para mal daquele que deve ser castigado, é ilícito”; mas impor uma reparação para correcção do vício e manutenção da Justiça, isso é louvável, no dizer de S. Tomás de Aquino – Suma Theológica (2-2-158,1,adz). Se a cólera for até ao desejo deliberado de matar seja quem for ou de o ferir gravemente, ofende de modo grave a caridade e é pecado mortal. O Senhor diz: “quem se irar contra o seu irmão, será sujeito a julgamento”, Mateus (5,22).
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A defesa legítima das pessoas e das sociedades não é uma excepção à proibição de matar o inocente, a que se chama homicídio voluntário. “O acto de defesa pode ter dupla consequência: uma, a conservação da própria vida; outra, a morte do agressor. Das duas só uma se tem em vista, a outra não”. Pode ler-se na “Suma Theológica” (2-2,64,7), de S. Tomás de Aquino. E ainda: “Se, para nos defendermos, usarmos duma violência maior do que a necessária, isso será ilícito. Mas se repelirmos a violência com moderação, isso será lícito. E não é necessário à salvação que se deixe de praticar tal acto de defesa moderada para evitar a morte do outro; porque se está mais obrigado a velar pela própria vida do que pela dos outros”.
Por outro lado, a legitima defesa pode ser, não somente um direito como um dever grave, para aquele que é responsável pele vida de outrem, do bem comum, da família ou da sociedade.
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O respeito e o crescimento da vida humana exigem a Paz. A Paz não é só a ausência da Guerra, nem se limita a manter o equilíbrio das forças contrárias. A Paz não é possível na terra sem a garantia dos bens das pessoas, a livre comunicação entre os homens, o respeito da dignidade das pessoas e dos povos e a prática assídua da fraternidade. A Paz é fruto da Justiça e efeito da caridade.
O 5.º Mandamento proíbe a destruição voluntária da vida humana. Por causa dos males e injustiças que toda a guerra trás consigo, a Igreja pressiona constantemente cada um dos seus filhos para que ore e tudo faça de modo que a bondade divina nos livre da velha escravidão da guerra (Gaudium et Spes, 81,§4).
No entanto enquanto subsistir o perigo da guerra e não houver uma autoridade internacional competente, dotada dos convenientes meios, não se pode negar aos governos, uma vez esgotados todos os recursos de negociações pacíficas, o direito de legitima defesa (Gaudium et Spes, 79, §4).
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Deve-se ainda a S. Agostinho, bispo de Hipona, a primeira definição de Guerra Justa: “Costumam definir-se guerras justas as que vingam injustiças”. E S. Tomás de Aquino apresenta três requisitos para a guerra justa: ser declarada por autoridade legitima, com justa causa e recta intenção. Esta teorização manteve-se até ao Concilio Vaticano II, com achegas doutrinárias elaboradas no século XVI por Victória (1487-1546), e Suarez (1548-1617), em que se dizia que “Guerra Justa é aquela que é declarada por uma autoridade legitima, com justa causa, em último recurso, com recta intenção e usando dos meios proporcionados”. Os quatro primeiros elementos constituem o chamado “jus ad bellum”, o direito de fazer a guerra; o último constitui o “jus in bello”, o direito no fazer da guerra. Tais normas serviram de base ao Direito Internacional Público e à moral política.
Assim, e ainda seguindo a Doutrina oficial da Igreja, a legitima defesa pela força das armas deve ter em conta:
- Que o prejuízo causado pelo agressor à nação ou comunidades de nações seja duradouro, grave e certo;
- Que todos os outros meios de o evitar se tenham revelado impraticáveis ou ineficazes;
- Que estejam reunidas as condições sérias de êxito;
- Que o emprego das armas não traga consigo males e desordens mais graves que o mal que se pretendia afastar. O poder de destruição dos meios modernos pesa muito sériamente na apreciação desta condição.
Os poderes públicos têm, neste caso, o direito e o dever de impor aos cidadãos as obrigações necessárias à defesa nacional.
O Concilio Vaticano II afirma na Constituição Pastoral “A Igreja no Mundo actual”, (Gaudium et Spes, n.º 79), “aqueles que se dedicam ao serviço da pátria no Exercito consideram-se servidores da segurança e da liberdade dos povos na medida em que se desempenham como convém desta tarefa, contribuem verdadeiramente para o estabelecimento da paz”. E ainda: “o direito de legitima defesa não pode ser negado aos governos uma vez esgotados todos os meios de solução pacífica pois eles têm o dever de proteger o bem-estar do povo confiado ao seu cuidado”.
E Paulo VI chegou a afirmar na sua intervenção na ONU, em 4 de Outubro de 1965, “enquanto o homem continuar a ser esta criatura fraca, mutável e mesmo perversa que tantas vezes mostra ser, as armas de defesa continuarão, desgraçadamente, a ser necessárias”.
É certo que desde sempre a guerra aparece ligada ao fenómeno religioso, podendo afirmar-se que todas as grandes religiões exceptuando-se, porventura, o Budismo, valorizam o culto da violência bélica e exaltaram o valor guerreiro.
Chegamos assim às causas da Guerra e seus remédios: “As injustiças, as excessivas desigualdades de ordem económica ou social, a inveja, a desconfiança e o orgulho que grassam entre os homens e as nações, são uma constante ameaça à Paz e provocam as guerras. Tudo o que se faz para combater estas desordens contribuem para edificar a Paz e evitar a guerra. A guerra é uma consequência do pecado e por isso só cessará com a vinda de Cristo”.
Na medida em que superem o pecado, unidos na caridade poderão ficar superadas as lutas e pode-se então realizar a palavra: “com as espadas forjarão os arados e foice com as lanças. Nenhum povo levantará a espada contra outro e jamais se exercitarão para a guerra”, pode ler-se em I S 2,4,e G S 78§6.
A procura da paz é, pois, um imperativo moral.
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O dia 1.º de Janeiro é anualmente consagrado como dia Mundial da Paz. Por isso não é de estranhar que Sua Santidade o Papa evoque esta data com uma mensagem. Foi o que sucedeu em 2005 em que João Paulo II escolheu como lema “Não te deixes vencer pelo Mal, vence antes o Mal com o Bem”, que não é mais que uma exortação de São Paulo aos Romanos (12,21). E, aqui, podemos ver como voltamos à eterna luta entre o Bem e o Mal.
E o Santo Padre urge aos responsáveis pelas nações e aos homens e mulheres de boa vontade para promoverem a paz no mundo através da prática do Bem e a não se deixarem vencer pelo Mal. E ambos (o Bem e o Mal) passam pela liberdade humana ou se quisermos, pelo livre arbítrio.
E clama que “o mal é, em última análise um trágico esquivar-se às exigências do amor”. E que o “bem moral, pelo contrário, nasce do amor e é orientado pelo amor”. Chega até, se o quisermos levar às últimas consequências ao amor pelos inimigos, como descrito no Evangelho: “se o teu inimigo tem fome, dá-lhe de comer; se tem sede, dá-lhe de beber” (R M 12,20).
E é sobre este prisma que o Santo Padre falou sobre os conflitos no mundo. E alerta para as visões redutoras da realidade humana que transformam o bem comum em simples bem-estar económico, privado de qualquer finalização transcendente, porque Deus é o fim último das suas criaturas (João Paulo II, carta enc. Centesimus annus, 41: AA S 83 1991). Isto tem como corolário, pôr o Bem Comum ao serviço do desenvolvimento dos povos que constituem a Humanidade, de modo a erradicar a pobreza em que vivem um bilião de seres humanos, e tal facto estar intimamente ligado ao bem da Paz.
E com isto afirma a esperança Cristã: “apoiado na certeza de que o mal não prevalecerá, o cristão cultiva uma indómita esperança, que o sustenta na promoção da justiça e da paz”. E se “no mundo está presente e actua o mistério da iniquidade (Ts 2,7), não se deve esquecer que o homem redimido tem em si energias suficientes para contrastá-lo”. E, assim, conclui que nenhum homem ou mulher de boa vontade se pode esquivar ao compromisso de lutar para vencer o mal com o bem. Sendo que é uma batalha que só se trava verdadeiramente com as armas do amor. Quando o Bem vence o Mal reina o amor e onde reina o amor reina a Paz.
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Com tudo isto dito podemos partir para uma última reflexão e que é esta: parece seguro que tudo começa no indivíduo, que é membro de uma família e indissociável desta, o que se reflecte em seguida na sociedade e depois desta, nas nações e, finalmente, na comunidade internacional.
Parece pois que para se atingir a paz no mundo teremos que estar em primeiro lugar, em paz com nós mesmos e no seio das nossas famílias. Saber e conseguir estar em paz com o nosso eu e com os que nos rodeiam, eis a tarefa primordial e a dificuldade maior.
Para se atingir este estádio não há fórmulas matemáticas, receitas absolutas, acções imutáveis. Cada um tem que encontrar o seu equilibro e os outros com ele. É um desafio permanente da vida. É o desafio que temos.
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