CEUTA UMA CIDADE
MILITAR
5/10/19
“Combatereis siempre,
Morrereis muchos,
Quiçá todos.”
TCor Millán-Astray
Já
tínhamos observado na “net” várias cerimónias militares da Legião Espanhola,
seguramente a força militar mais peculiar de todas as Forças Armadas
Espanholas.
Agora,
porém, tive ocasião de observar “in loco” e ao vivo, a cerimónia que marcou a
comemoração do 99º aniversário da sua fundação, em 20 de Setembro de 1920.
E
justamente no local da sua fundação, o “Aquartelamento de Garcia Aldave” talvez
o local mais ermo e inacessível de Ceuta.
Ceuta
é de facto uma cidade caracteristicamente militar, tendo o seu contingente atingido
cerca de 10.000 homens num passado não muito distante.
Esta
tradição vem do tempo da sua conquista pelos portugueses, em 21 de Agosto de
1415, que antes do seu regresso deixaram a defender a cidade, 2.500 homens do
Exército de 20.000 que a tomou.
Como
governador da praça ficou D. Pedro de Menezes, cuja altiva resposta para o Rei D.
João que inquiriu se ele se achava capaz de dar conta da tarefa, ficou para a
história: “com este pau me basto”, referindo-se a uma vara com nós, que
empunhava.
Este
“pau” denominado “aleu” (usado num jogo popular na época) ainda hoje existe e
está guardado entre as mãos da Virgem Santa Maria de África, na Igreja com o
mesmo nome.
Foi
sempre o símbolo de autoridade de todos os capitães-mor de Ceuta e ainda é hoje
empunhado pelo Comandante Militar da cidade, nas cerimónias de maior
significado.
Ceuta
foi cedida a Espanha, pelo Tratado de Lisboa de 1668, que pôs fim à cruenta
guerra que travámos vitoriosamente durante 28 anos, a Guerra da
Aclamação/Restauração.
Lembra-se
que a cidade foi o único lugar em todo o mundo português que não alçou bandeira
por D. João IV e cujas razões ainda são hoje objecto de polémica.
Deve
dizer-se que todo o património português existente está bem preservado, uma das
ruas principais, senão a principal, chama-se “Camões” e as armas da cidade com
as cores da bandeira de Lisboa e as armas nacionais mantiveram-se.
Existe
um monumento ao Infante D. Henrique e uma Igreja de Santo António e seu culto,
que infelizmente se diz de Pádua em vez de Lisboa.
Foi
pena que Ceuta não quisesse ficar portuguesa, pois para além da sua importância
estratégica e farol da cristandade no Norte de África, tinha um carácter
simbólico por a sua conquista ser considerada o início da expansão ultramarina
dos portugueses.
E
talvez tivesse evitado a oferta de Tanger no dote da Rainha Catarina e mais
tarde, o abandono de Mazagão determinado por Pombal.
Evitou,
porém, passar pela vergonha da “retirada de pé descalço”, ocorrida em 1974/75…
Ceuta
– com 18,5 Km2 - é hoje uma cidade próspera com cerca de 86.000 almas, que vive
do turismo, de alguma pesca e serviços e de ter um estatuto de zona franca, o
que favorece o comércio.
A
atmosfera é de uma típica cidade espanhola, onde se vê cada vez mais cidadãos
de origem marroquina o que levará provavelmente num futuro próximo a fortes tensões
sociais e políticas, dado o conhecido número de filhos que têm em relação aos
espanhóis. Com as conhecidas consequências demográficas.
Ceuta
está muito pressionada pela imigração clandestina existindo ainda problemas de
contrabando e tráfico de droga, notando-se um controlo elevado por parte das
autoridades espanholas.
Nos
dias em que por lá estivemos constatámos a presença da vice presidente da
Câmara de Vila Real (de Trás-os-Montes) a fim de negociar uma geminação entre a
duas cidades, derivado do já citado D. Pedro de Menezes ter dado origem à Casa
de Vila Real (Conde e mais tarde Marquês).
Mas
voltemos à Cerimónia Militar da Legião, que foi o que, desta vez, nos levou a
Ceuta, cidade que vale uma visita e deve estar sempre num cantinho do coração
de cada português.
Devo
começar por dizer que assistir a uma cerimónia militar promovida pela Legião
Espanhola é mergulhar num mundo de tradição, de marcialidade, panache e alto
espírito militar. Independentemente de se gostar mais ou menos da forma
picaresca como correm ou no passo rápido e curto como marcham ou até, na forma
algo exagerada como levantam o queixo ou os braços.
Mas
tudo isto deve levar-se à conta de se encontrar algo de diferente e único, que
os congrega, como os cânticos; a camisa com o primeiro botão desabotoado; as
mascotes, etc., para transformar gente recrutada de um modo singular, em todas
as camadas sociais, e extensivo a não espanhóis, numa unidade de combate de
excelência, marcada por um espírito de corpo e mística muito própria (à
semelhança da Legião Estrangeira Francesa).
Sendo de realçar ainda que todos os
legionários para além do posto vencem o tratamento de “Caballero” ou “Dama”,
por exemplo “cabo caballero legionário”.
Tendo
por fundo uma época de grande conflitualidade política e social na sociedade
espanhola; uma decadência nas suas forças armadas, que tinham sofrido algumas
derrotas no Marrocos nas décadas anteriores (e seguinte) com a perda de muitos
milhares de homens e muito material.
Deve-se
ainda lembrar que ainda estava viva a lembrança humilhante da guerra de 1898
perdida para os EUA, em que a Espanha foi desapossada de Cuba, de Porto Rico,
Guam e das Filipinas.
Por
tudo isto a Legião teve um grande sucesso tendo sido apoiada por Franco - um
oficial em ascensão que chegou a comandar um “Tercio” – tendo mais tarde ganho
os créditos por combater do lado do vencedor na Guerra Civil.
Não
é por isso de estranhar que parte da classe política actual espanhola olhe com
a maior desconfiança para a Legião e consta que Filipe Gonzalez, quando
primeiro – ministro, esteve com o decreto-lei da extinção deste corpo de tropas,
à sua frente para assinar.
Estava-se
contudo, em plena guerra dos Balcãs e o Estado Espanhol não quis ficar de fora
da contenda e nada melhor do que mandar para lá a Legião, talvez na esperança
de que cometessem alguns erros e desse modo haver uma justificação mais
objectiva para a sua extinção.
É
claro que unidades destas dão-se bem é com acção e não com o tédio de acampar
nos arredores das cidades que lhes servem de base.
Por
isso a Legião mantém-se o nervo e a força para todo o serviço do Exército Espanhol
nas principais “operações” de Paz em que “nuestros hermanos” têm participado.
E
não devem ser bons de assoar…
A
Legião dispõe de três Tércios, o 1º denominado de “Gran Capitan” (Gonçalo de
Cordóva) está em Mellila; o 2º, “Duque de Alba” está em Ceuta e o 4º “Alejandro
Farnesio” está em Ronda.
Existe
ainda uma brigada (“Rey Alfonso XIII”) constituída, com sede em Almeria, que
faz parte da “Divisão Castilellejos”.
O
desinvestimento que a maioria dos países europeus fez a partir da queda do Muro
de Berlim, na sua defesa, o que tem sido acompanhado pela subversão da própria
sociedade, também atingiu há muito a Legião. Por exemplo o 2º Tercio (Ceuta)
está a 50% do seu potencial e por todas as unidades espanholas há falta de
voluntários e obras a meio por falta de fundos.
Na
parada formaram a banda de guerra do Tércio; a banda de música do Comando
Militar de Ceuta; duas Secções de “batedores” (que pelo valor dos seus serviços
ganharam jus a desfilarem à frente do Estandarte Espanhol) e cinco Companhias
de Infantaria.
A
Cerimónia Militar é algo longa mas não cansa, pois não tem tempos mortos e é
cheia de ritmo; é toda feita de força e energia estando a “simbólica” sempre
presente, desde as mascotes (cabras ou carneiros), que marcham à frente dos
batedores – usados antigamente para detectarem emboscadas ou campos de minas –
aos cânticos. O mais impressionante dos quais é o hino “noivio de la muerte”,
cantado em uníssono aquando da homenagem aos mortos (contam-se cerca de
10.000), enquanto um pequeno contingente transporta o Cristo da “Buena Muerte”,
que é deposto numa cruz em local escolhido para o efeito, culminando com três
salvas de tiros por um dos pelotões em parada.
Aliás
por toda a existência da Legião, perpassa o “culto da morte”, melhor da boa
morte, ou seja em combate, tida como a mais honrosa de todas. E a encimar a
porta dos quartéis pode ler-se a legenda: “Legionários a luchar, legionários a
morir!”. Vejam pois as erupções de pele que tal mística deve causar ao
politicamente correcto de hoje em dia…
A
cerimónia tem início (existem várias “filosofias” sobre como efectuar uma
cerimónia militar) com a apresentação de todas as subunidades ao comandante do
Tercio, que comanda os seus homens na parada, que apenas abandona para discursar.
Um discurso curto, enxuto sem minutos intermináveis de salamaleques às
entidades presentes, que são saudadas de forma sóbria. Com a particularidade de
se dirigir em primeiro lugar ao Comandante Militar (que presidia) e não ao
presidente do governo da cidade autónoma de Ceuta, que estava à sua esquerda,
pois à sua direita estava um outro militar…
Depois
da integração do Estandarte Espanhol e da saudação ao Rei e a Espanha, entra na
parada o Comandante Militar que passa uma revista rápida mas marcial. Depois
num minuto saúda os presentes e agradece a sua presença, após o que toma lugar
na tribuna.
De referir o “bom
aspecto” dos oficiais espanhóis e a maneira sóbria, afirmativa e desempoeirada
como falam e actuam.
Segue-se
entrega de prémios e condecorações o que é feito de uma forma expedita e bem
organizada e também uma cerimónia marcante que infelizmente não existe tradição
de se fazer em Portugal.
Trata-se
da despedida pública dos militares que vão abandonar o serviço activo, os quais
se dirigem individualmente para a Bandeira, que beijam e saúdam antes de se
retirarem, enquanto são referidos alguns dados sobre o curriculum de cada um.
Tem
lógica já que um militar é-o de corpo e alma, inteiro depois de jurar bandeira,
retira-se perante a mesma bandeira depois de a (supostamente) honrar e servir.
É
bonito, é marcante e não custa nada.
O
desfile finaliza e não deixa ninguém indiferente.
Muito
público e antigos legionários presentes.
Ampla
cobertura mediática.
O
que destoou foram as falhas protocolares e alguma confusão na atribuição de
lugares reservados.
E
para não variar lá topámos com quatro portugueses (dois dos quais ainda no
activo) que se alistaram na legião.
Está,
aliás, por fazer o historial dos portugueses que serviram na legião espanhola e
francesa, o que seria um estudo interessante de se levar a efeito.
A
legião está pois de parabéns. E se a sua capacidade operacional actual (que não
sabemos avaliar) corresponder ao espelho exterior que a cerimónia representa,
então estamos seguramente perante uma das mais temíveis unidades militares que
restam à Velha Europa.
E
julgo não me enganar muito ao dizer que enquanto a legião viver, a Espanha não
morre…
João
José Brandão Ferreira
Oficial
Piloto Aviador (Ref.)
[1] De seu nome completo José
Millán-Astray y Terenas, Corunha, 5-7-1879 – Madrid,1-1-1954, foi o fundador e
primeiro comandante da Legião Espanhola (e da Rádio Nacional de Espanha). Foi
ferido quatro vezes em combate tendo perdido o braço esquerdo, em 1924 e o olho
direito, em 1926. Foi ele que criou a mística da Legião tendo criado as suas
famosas divisas, “viva a morte” e “a mí la legion”. É uma autêntica lenda para
todos os legionários. Está sepultado no cemitério de Almudenas, em Madrid.
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