“A Inviabilidade do SNS num país inviável”.
José Manuel da Silva
A Associação de Oficiais das
Forças Armadas (AOFA) promoveu um colóquio, em 8 e 9 de Outubro, sobre os
Serviços de Saúde Militares (SSM) - cuja discussão pública se tem afunilado
apenas na questão do hospital das FA.
Este colóquio tinha por objecto
chamar a atenção para a necessidade de reversão de algumas decisões, em má hora
tomadas pelos sectores do Governo ligados à defesa.
Coube ao Bastonário da Ordem dos
Médicos, Dr. José Manuel Silva, proferir a conferência inaugural.
É sobre esta conferência que
vamos incidir o escrito de hoje, não porque o tema da meritória iniciativa não
me mereça relevância, mas porque já dei q.b. para esse peditório, e
parafraseando, “vozes do céu não chegam aos burros”…
Que disse então o Bastonário,
pessoa conhecida no país pelas inúmeras intervenções públicas, por norma
equilibradas e apreciadas, que me despertou o interesse de um comentário?
Ao contrário do que seria
espectável pouco se referiu aos SSM, certamente por estar pouco à vontade no
assunto, mas aproveitou o ensejo para fazer uma larga exposição sobre o Serviço
Nacional de Saúde (SNS), com cópia alargada de números que espelham muito da
realidade desde há 40 anos até à actualidade.
Fez ainda umas quantas e
judiciosas considerações sobre a exploração e gestão dos recursos naturais e a
sustentabilidade do planeta terra, face ao estilo de vida consumista que os
humanos desenvolveram.
O Bastonário dissertou sobre a
austeridade causada pela “crise” em que estamos mergulhados e como esta está a
destruir o SNS e a inviabilizar todo o apoio que desde a sua criação facultou à
população.
Insurgiu-se o senhor Bastonário
contra este estado de coisas.
Eu creio que tem razão, mas vou
vestir as roupas de “advogado do demo” e colocar umas quantas questões.
Penso, em primeiro lugar, que o
SNS foi a coisa mais bem conseguida que se realizou após o 25/4 – enfim, sem
contar com a qualidade do vinho, que sendo então já boa, melhorou bastante.
O problema que o SNS teve e que,
de resto, todos os sectores do Estado sofreram nestas malfadadas décadas, foi o
de uma grande má gestão das finanças, sem controlo adequado, sem responsabilização,
sem nada!
Tal ocasionou vastíssimo
desperdício e despesismo – e ficamos por aqui – que ia desde o desaparecimento
do papel higiénico e ligaduras, à compra de carros de alta cilindrada para os
gestores, passando pelo valor das horas extraordinárias que os diferentes
profissionais ganhavam e que chegavam, por vezes, a ultrapassar os do seu
vencimento.
E já não vamos falar do “farró”
das obras realizadas, do negócio dos medicamentos e de certa promiscuidade
entre o que se passava no SNS e os privados…
Por outro lado, não havia
aparentemente, tecto para as despesas, ou seja, quando faltava dinheiro,
pedia-se emprestado à banca.
E quanto ao Orçamento de Estado,
alguém se lembra durante quantos anos seguidos se chegava a Outubro e lá se
fazia um orçamento ractificativo para a saúde? Foram muitos…
Pois é, deu no que deu!
Numa palavra, construímos e
mantivemos um SNS desajustado das nossas possibilidades e realidades, que a
produção de riqueza não sustentava e a má gestão agravava.
Isto já para não falar nos
governos que há vários anos a esta parte, tudo têm feito para transformar a
saúde apenas em negócio e entrega-la aos “amigos” dos grupos privados!
Agora as perguntas aborrecidas.
Compreende-se que o senhor
Bastonário esteja preocupado com o desinvestimento e o aperto financeiro no
SNS, mas fará o favor de ponderar o que fez a Ordem dos Médicos quando se
gastava à tripa forra? Quando havia desperdício, que entrava pelos olhos
dentro? Quando se esbanjava recursos?[1]
Quando praticamente toda a gente
– desde a mulher-a-dias ao director de hospital – recebia o que devia e o que
passava das marcas?
Que denúncias fizeram os seus
antecessores? Numa altura em que seria corajoso fazê-lo, não agora, em que não
há cão nem gato que, quase em coro, por esse país inteiro não reclame e
proteste! (perdão, há uma excepção: às chefias militares não se ouve um pio,
estão “tranquilas”, obviamente por não faltar nada ao Exército, à Marinha e à
FA!).
O que o senhor Bastonário afirmou
acaba outrossim, por encerrar uma contradição insanável.
Ao protestar contra a austeridade
que é consequência da incontinência financeira anterior e desregramento dos
costumes, e ao não ter condenado os excessos apontados que levaram à actual
situação, quer isso dizer que deseja continuar na senda do endividamento?
Provocando desse modo mais
austeridade, mas só lá mais para a frente?
Por outro lado, o Senhor
Bastonário faz o que lhe compete: clama pela sua dama, embora o âmbito de
actuação da Ordem dos Médicos não se limite ao SNS.
Mas, e as outras áreas do País?
Qual é a sua preocupação com elas? Ou a saúde está acima de tudo e, ou, nada
mais existe? (Sim, eu sei que não é Primeiro-Ministro).
A pesca é desprezível? A
Investigação não interessa? Se o senhor não tiver couves, batatas e bife para
comer, consegue operar?
E se não houver Segurança, o País
pode funcionar? Penso que saberá que os navios estão, por norma, atracados, a
FA voa pouco mais do que um modesto aeroclube e o Exército é já praticamente
virtual.
Terá ideia de que as únicas
munições que Portugal produz, são as de caça e qualquer dia nem mesmo essas? (a
Caça acaba, não há mercado!)
Não sei se sabe mas no SNS só se
começou a fazer cortes há três anos e devagarinho; nas FA foi há mais de 20
anos e um bocado à bruta.
Deu nisto, passarmos a ter um
hospital militar, onde havia quatro, que já não chega para as encomendas não
cabendo aqui explicar-lhe porquê.
Esse era o tema do colóquio onde
o senhor foi convidado a falar.
O País, senhor Bastonário, está a
desaparecer – certamente já deu conta disso, como prova a citação em destaque.
O SNS apenas o acompanha.
Nota: As conclusões do colóquio
publicitadas pela AOFA parecem equilibradas e ajustadas. Falta apenas indicação
de acções concretas para as implementar.
Mas deve-se perguntar o seguinte:
O que andaram a fazer os variados grupos “ad-hoc” criados fora da estrutura
militar para estudar o assunto? Para que serviram e qual a intervenção dos
estados – maiores dos Ramos no meio desta “reforma”?
Finalmente, qual o papel dos
sucessivos Conselhos de Chefes Militares, em todo este âmbito?
[1] Sabe que uma vez em Cuba, há
poucos anos, precisei de fazer um curativo e a enfermeira cortou ao meio a fita
de adesivo que fixava o penso, para poupar? (Como, aliás, eu vi fazer em
Portugal, quando era miúdo); e saiba que estava num hotel daqueles para
turistas, onde se pagava em dólares…