domingo, 29 de novembro de 2020

OS ATAQUES NO NORTE DE MOÇAMBIQUE

 


OS ATAQUES NO NORTE DE MOÇAMBIQUE

                                                        (“UM GRITO DE TERROR”)

29/11/20

                                     “Não são ladrões apenas os que cortam as bolsas.

                                       Os ladrões que mais merecem esse título são aqueles

                                       a quem os reis encomendam os exércitos e as legiões

                                       ou o governo das províncias, ou a administração das

                                       cidades, os quais, pela manha ou pela força, roubam

                                       e despojam os povos.

                                       Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam

                                        cidades e reinos; os outros furtam correndo risco,

                                        estes furtam sem temor nem perigo. Os outros, se

                                        furtam, são enforcados; mas estes furtam e enfor-

                                        cam”.

                                   Padre António Vieira, Sermão do Bom Ladrão.                                                                       

     O meu camarada e amigo, Coronel Florindo Morais (que tem quatro comissões de serviço na última campanha ultramarina), escreveu um pequeno texto que circula na “net”, sobre o que se passa actualmente no Norte de Moçambique, a que chamou um “grito de terror”. Eu julgo que é mais um “grito d’alma” e de indignação sobre a barbárie que por lá acontece e relativamente à hipocrisia das Relações Internacionais”, onde cada um só se move mediante os seus interesses. Às vezes nem isso, como é manifestamente o caso português que há muito deixou de ter Política Externa, própria.

     Por isso o Coronel F. Morais apela à intervenção da ONU; dos “actores” da cena internacional; às autoridades moçambicanas e ao Estado Português, para saírem da sua letargia e fazerem algo. O que esse “algo” significa é que não está discriminado, a não ser uma ideia de se convidar os antigos militares das “tropas comando” (de que ele faz parte), os quais, mesmo com mais de 60 anos “resolveriam o assunto”. O que eu não duvido, desde que lhes distribuíssem o armamento e equipamento necessário, mas eles já cumpriram a sua missão e não merecem morrer por esta…

     O meu primeiro impulso também foi o de apoiar a ideia do meu antigo instructor, mas esfriando um pouco a cabeça raciocinei um pouco e vieram-me á ideia alguns pensamentos que vou partilhar.

     Os portugueses chegaram ao território que hoje constitui Moçambique – em tempos, a “pérola do Índico” – ao tempo em que o Almirante D. Vaco da Gama, de saudosa memória, lá aportou (creio que ainda ninguém pensou em apeá-lo das estátuas; tirar os seus ossos dos Jerónimos ou apagar o seu nome das ruas…). E por lá fomos ficando.

     Desde então a História deu muitas voltas (como o Direito Internacional) e muitos foram os potentados que nos quiseram desalojar de lá, o que raramente teve a ver com os autóctones (e muitos chegaram depois de nós), a quem desde sempre oferecemos a nossa civilização e nacionalidade e a protecção da Coroa Portuguesa. Até da República Portuguesa, pois tal nada tinha a ver com regimes.

     Porém, após as ideias postas em marcha na sequência da Segunda Guerra Mundial, sobre a autodeterminação dos povos (que na realidade visavam era a substituição das soberanias; obter apoios para cada lado da “Guerra - Fria” e o acesso a matérias – primas e pontos de interesse estratégico) e nada tinham a ver com a realidade portuguesa, foi criada, entre outras, uma organização política que se desenvolveu principalmente fora de portas, que tomou o nome de Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). A qual com a ajuda externa sobretudo de países comunistas, mas também alguns ocidentais, sem a qual não sobreviveria, moveu a Portugal, em que Moçambique constituía na altura, uma “Província”, uma guerra subversiva e de guerrilha, visando expulsar a presença política dos portugueses, tomar o Poder e tornar o território independente de Portugal.

     Esse ataque teve uma resposta à altura, por parte das autoridades portuguesas e da população em geral. Tal resposta foi de Direito e natural, pois estava impregnada no “ADN” nacional.

     Um “Golpe de Estado” mal gizado e preparado, que acabou por visar a substituição do Governo/Regime, em Lisboa, ditou o fim da resistência e a entrega – à revelia de qualquer senso político e social e, até, do Direito Internacional, do Poder em Moçambique para a Frelimo, que se encontrava em agonia e derrotada à data do golpe.

     Não há adjectivos para qualificar a infâmia catastrófica então vivida.

     No fim o Poder foi entregue atrabiliariamente à Frelimo e a Bandeira Portuguesa foi arriada na maior ignomínia.

     Seguiram-se décadas de guerra civil, que destruiu o território e causou incomensuráveis sofrimentos de toda a espécie nos habitantes do território e nos que foram obrigados a fugir. E, apesar de hoje em dia, haver um acordo de paz, a questão política e social está longe de estar resolvida; nada funciona e Moçambique – um território a todos os títulos, riquíssimo, em explosão económica e social em meados de 1974 – é hoje um dos países mais miseráveis do planeta!

     Não é pois de estranhar, que um país (?) deste quilate, sem comunicações terrestres norte/sul, e sem meios aéreos e navais para utilizar como alternativa; com o território atravessado transversalmente por dois grandes rios, que praticamente o divide em três partes distintas, tenha uma revolta armada no seu extremo norte (a cerca de 2000 quilómetros da capital, onde tudo se passa – a ex- formosa Lourenço Marques), a província de Cabo Delgado que é quase do tamanho de Portugal Continental (82.625Km2) e cerca de 2.4 milhões de almas.

    Tal revolta, que conta com gente estranha ao território foi fomentada, aparentemente, pelo DAESH – organização de fanáticos muçulmanos que, oficialmente, nunca ninguém explicou como nasceu e se desenvolveu. O que já causou cerca de 2.000 mortos e quase meio milhão de desalojados entre a população.

     No Norte de Moçambique houve desde sempre, alguma influência muçulmana e árabe, que foi descendo junto à costa, comerciando. Na altura em que o domínio político pertencia aos portugueses, tal influência (que nunca tinha progredido para o interior) estava controlada e em boa paz.

     Mas agora as autoridades moçambicanas apesar dos 45 anos de independência (ah, ah, ah) não têm praticamente qualquer controlo na região, ao passo que algumas riquezas ligadas á energia (gaz natural e petróleo), entretanto descobertos, foram maioritariamente parar às mãos de empresas francesas e americanas. O garimpo de minerais preciosos também tem atraído toda a espécie de aventureiros.

     O caldo de cultura estava criado.

     As relações do novo estado independente (ah, ah, ah) e Portugal foram estabilizadas, mas nunca passaram, na prática de palavras de circunstância e de ajudas a fundo perdido (do Governo de Lisboa). A própria cooperação técnica civil e militar – um esforço que já nos custou milhões de euros – esfumam-se na incompetência e corrupção das autoridades moçambicanas, sem que o Governo Português consiga (ou queira) colocar alguma ordem no beco. Apesar de tudo isto não é raro sermos visados em termos de colonialismo primário…

    Entretanto as empresas portuguesas que por lá moirejam vivem na maior dificuldade em serem ressarcidas do seu trabalho, ao passo que a comunidade portuguesa é vítima contumaz de raptos com o fim de extorquir resgates.

     Moçambique aderiu à Commonwealth, em 1995, por via da proximidade com a RAS e o Zimbabué, de onde só copiaram maus exemplos.

     Também aderiram à CPLP, onde até hoje estão por inércia, até porque a dita organização (ainda) não passou de um nado – morto. Ninguém lhe insuflou vida, muito menos alma…

     Portanto nada do que se passa agora no Norte de Moçambique, na terra dos Macondes (aquilo ainda é meio tribal e a única coisa que os une é a herança cultural portuguesa) – que têm fama de bons combatentes (e muito tocados pelo catolicismo) – nos deve admirar. Mesmo tendo em conta o corte de cabeças indiscriminado, recentemente ocorrido. Quem com ferros mata, com ferros morre.

     Também eu tenho pena da maioria daquela pobre gente, que não tem culpa nenhuma dos males que os assolam, mas não posso fazer nada. E, muito provavelmente, não devo.

     Não posso (devo) fazer nada, em primeiro lugar porque Moçambique é um país independente (ah, ah, ah!) que, ao que se sabe, ainda não pediu ajuda a ninguém. Talvez para não reconhecer da inabilidade, impotência e desgraça que o actual Estado Moçambicano representa.

     Em segundo lugar, as autoridades do Maputo devem pedir ajuda a quem com eles tenha alianças políticas e de defesa, se é que alguma, o que não é o caso de Portugal. De seguida deve pedir ajuda à ONU, essa prestimosa e babilónica, cara e incompetente, que nunca prestou um serviço à Humanidade nem resolveu qualquer problema sério. Mas que se esforçou muito para obrigar a Nação Portuguesa a abandonar politicamente qualquer território fora do continente europeu. O mui católico e progressista, bem comportadinho, bem - falante e inefável tuga, António Guterres, há - de querer estar certamente, na primeira linha da frente para tentar resolver tão chocante caso! Desse modo se evitaria que tal ónus caísse em cima dos antigos combatentes portugueses, que cumpriram o seu dever para com a Pátria, quando a isso foram chamados (embora desse dever só possam dar baixa para a cova).

       Além disso ainda resta a Moçambique pedir ajuda aos regimes cafreais seus vizinhos da RAS e Zimbabué, com quem são tão próximos ideologicamente… Ou até, quem sabe, podem pedir ajuda à Tanzânia, para lhes ceder a antiga base de Nashingwea, de onde partiam para nos emboscar as tropas e maltratar as populações. Podiam até, esclarecer-nos sobre o que se passou com o navio Angoche – atacado em 1971 - e os seus 22 tripulantes que desapareceram até hoje…

     Se apesar destes eventuais esforços falharem (como normalmente é o caso) e Moçambique quiser a ajuda portuguesa, esta tem de ser bem negociada. Estou farto de ser o “totó de serviço”! Até porque não nos livraríamos de acusações de neocolonialismo e por aí fora…

     Sem embargo as autoridades moçambicanas têm de começar por fazer algo para tentarem resolver o problema que têm em mãos, pois ninguém vai ajudar ninguém que, em primeiro lugar, não se queira ajudar a si próprio. E, até ao momento, que conste, só demonstraram incapacidade, cobardia e desfaçatez. Devem estar à espera que as empresas estrangeiras que operem na região paguem a uns mercenários para erradicar os insurgentes…

     Mas mesmo que Portugal quisesse ajudar o que poderia fazer a não ser usar de bons ofícios diplomáticos?

     O Governo (o Estado Português), a única ideia que tiveram desde o terramoto do “PREC” foi o de se atirarem de cabeça para a agora União Europeia (que caso tenha sucesso vai acabar com o País), onde se esmeraram em serem “bem comportados” a fim de puder esmifrar o máximo de ajudas comunitárias, mesmo que com isso pudessem causar dependências, dívidas e empobrecimento irreparáveis. Tem sido a estratégia da mão estendida.

      A excepção foi a de, num raro momento de lucidez, se ter apostado no alargamento da Plataforma Continental, que está a ser confrontada com complexas negociações, de que pouco tem vindo a público. E se tiver algum sucesso o mesmo estará logo restringido pelo Tratado de Lisboa e restante legislação de Bruxelas.

     Tirando isto não há estratégia para nada, África incluída. Enfim enviamos pequenos contingentes de tropas para países africanos e não só (cuja maioria não nos diz nada), na estrita obediência a compromissos internacionais, que nos ajudam a sustentar. Mas as Forças Armadas estão praticamente esgotadas e à míngua de tudo e tal não se aplica somente ao âmbito material.

      Mas como aquilo em Moçambique (que já leva três anos), começou por ser um caso de polícia, não há nada como enviar um contingente da PSP (que diabo já têm o dobro dos efecivos do Exército), ou da GNR que passou a ser pau para toda a obra e deixa o quantitativo da Armada e da FA (com metade dos efectivos) a ver navios e “drones”!... O pior vai ser os sindicatos e associações existentes que não vão gostar da coisa e exigir muitas horas extraordinárias…

     De facto restam os antigos “comandos” para irem dar o corpo ao manifesto. Até eu iria com eles, mas não tornava a sair de lá enquanto não se fizesse um referendo, para se saber se a maioria da população, desejaria voltar a ser portuguesa ou não.

      Até lá, pensem bem, não seria melhor o Governo enviar o Otelo Saraiva de Carvalho e afins, ainda vivos, negociar com os “rebeldes”? (ou devo chamar-lhes guerrilheiros; Combatentes pela “verdade”; libertadores da Pátria; apoiantes do Califado; fanáticos religiosos ou bandidos de delito comum?). O gracioso verbalizador do “pá” tem experiência no assunto e poderia finalmente realizar a peça teatral da sua vida!

     As responsabilidades têm de morar em casa própria e os crimes efectuados não deviam prescrever. O julgamento da História não prescreve e será feito, mas é tardio, pouco efectivo e depende de quem a escrever.

     Estou a ser duro e insensível? Não estou, estou apenas a ser realista. Lamento mas Moçambique já não é terra portuguesa. Resta a saudade que morrerá quando nós morrermos.

     E como dizia Goethe, “ninguém é mais escravo sem esperança, do que aqueles que falsamente acreditam que são livres!”.

 

                                                                   João José Brandão Ferreira

                                                                   Oficial Piloto Aviador (Ref.)

domingo, 15 de novembro de 2020

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

O GUARDA - CHUVA DA FORÇA ÁEREA

O GUARDA - CHUVA DA FORÇA ÁEREA

01/11/20



“Chuva civil não molha militar”.

             Da gíria castrense.

 

 

            Põe-se uma questão que é esta: a chuva mesmo sendo “civil” (um fenómeno meteorológico não existente, dado só existir “chuva”), molha militar ou não? Molha, ai não que não molha!…[1]

Ou seja, molha no sentido real do termo; porém, metaforicamente, quando aplicado aos militares portugueses (até agora) não molhava; imbuídos então deste espírito, a chuva não molhava mesmo que os enregelassem até aos ossos!

Esta assunção entrou na psicologia colectiva que os diferenciava e o termo “civil”, aparece como chiste e para tornar efectiva essa diferenciação.

Mas a ideia que presidiu aos antigos (já ninguém tem ideia de como estas coisas apareceram e passaram a fazer parte da “praxis” militar) para nunca se terem lembrado ou querido, que houvesse um chapéu - de - chuva da “ordem” foi a de preparar psicologicamente as tropas para a dureza do combate, finalidade última da sua existência.

Lembrou-se agora o Comando da Força Aérea (certamente inspirado na Força Aérea americana), de colocar em causa esta “centenária” tradição castrense e tal fez espoletar, sobretudo nas conversas e nas redes sociais, um estado de indignação e vitupério, raramente visto, mesmo quando em confronto com decisões muito mais gravosas, até de lesa - Pátria, com que amiúde somos brindados. E, valha a verdade, que o ocorrido tem, outrossim, o apoio ou a indiferença de uns poucos.

É certo que a circular (nem sequer é directiva) possui salvaguardas importantes, relativamente à restrição do uso do guarda - chuva em situações que seriam de todo impraticáveis, mas nem isso travou a agitação das mentes e a gozação quase geral.[2]

Para tal concorreu bastante o facto do Comando da Força Aérea ter cometido dois erros à cabeça: não ter justificado a necessidade deste novo “item” e não ter discutido o assunto com os outros Ramos e até, com a GNR.

É certo que cabe nas prerrogativas do Chefe de Estado-Maior da FA mudar o fardamento do seu Ramo, mas a decisão extravasa o limite do mesmo, por ter a ver com a “imagem” tradicional do militar e tal não se confinar à Força Aérea. E note-se até, que a PSP, sendo civil (por exemplo) também não é contemplada com tal artefacto...

Mas aquilo que achei mais “notável” - e é essa a razão que me levou a dar-me ao trabalho de escrever este arrazoado - foi a de que quase todas as pessoas com quem falei sobre o assunto (e estavam contra) não conseguirem aduzir qualquer argumento sério que consubstanciasse a sua indignação.

Tão pouco os que são a favor, à excepção da evidência, que o guarda - chuva ajudaria a proteger os militares das intempéries, “máxime”, evitar uma valente gripe.

Apesar do argumento elaborado em termos de adequação militar, será o de afirmar, que a preservação da saúde física e mental do militar se irá repercutir no seu desempenho em combate (ou até no dia-a-dia).

Basta ver, por exemplo, que tivemos mais mortos por doença na campanha em Moçambique durante a I GM, do que no campo de batalha. Apesar da ausência ou não, de guarda - chuvas no equipamento da altura não teria, seguramente, influenciado as baixas ocorridas…

Ora em qualquer actividade humana e por maioria de razão, no âmbito militar, as decisões não podem (ou devem) ser tomadas porque sim, ou porque não. Deve haver uma racional que as suporte e uma mais-valia a obter. Isto, claro, desde que não ponha em causa princípios ou doutrina existentes.

Ora, é sobre estes aspectos que o consciente e inconsciente individual e colectivo, não conseguiu raciocinar com um mínimo de serenidade e objectividade.

Aparentemente as pessoas, onde naturalmente se destacam os militares, ao serem colhidas de surpresa pela medida ficaram espantadas e reagiram quase automaticamente a algo que vai contra o seu imaginário a que não se pode desligar algum sentimento de ridículo quanto à situação.

A esmagadora maioria dos militares no meio dos seus comentários, indica invariavelmente o “até parece que não há nada mais importante para resolver”...

Não queria ir por aqui, já que tal é lateral e circunstancial à questão e, ainda, por nessa ordem de ideias não se poder tratar qualquer questão que não estivesse hierarquizada pelo grau de importância. Mas entendemos o sentido da argumentação.

 Visto sobre outro prisma, a negação “tout court” da introdução do guarda - chuva na indumentária militar, seria o mesmo que negar qualquer tipo de evolução. Ora se houve coisa que nunca parou de evoluir foi o tipo de uniformes e restante equipamento individual do combatente.

As casacas do século XVIII, por exemplo, tinham três ou quatro grandes botões na parte correspondente ao antebraço. Tal destinava-se a dissuadir os seus utentes a assoarem-se nas repectivas mangas...

Do mesmo modo a aba traseira da casaca ou capote, tinha duas rachas com duas casas no seu final e encimadas por dois botões, o que permitia segurar a aba dobrada em cima, de modo que o militar pudesse fazer as suas necessidades fisiológicas sem sujar o uniforme...

Na Primeira Guerra Mundial (e não só) muitos oficiais usavam uma bengala, por razões várias. É célebre a foto do General Tamagnini, Comandante do Corpo Expedicionário Português na Flandres, apoiado na sua. Hoje em dia não passa pela cabeça de ninguém usar bengala e o bengalim é apenas uma tradição residual cavaleira.

Pode ainda argumentar-se que a seguir a este passo do guarda - chuva, se deveria também usar “galochas” (o que por acaso já existiu), ou um outro qualquer artefacto que se queira inventar, colocando-se a questão da “fronteira”, isto é, até onde se deve ir.

As próprias cerimónias que envolvem formaturas por vezes também são adiadas quando há ameaça de mau tempo ou transferidas para um recinto coberto.

E consta que na tropa italiana quem está formado, começando a chover, pode debandar, sem ordem de ninguém. (mas enfim desde o fim do Império Romano que os exércitos da Península Itálica não são grande exemplo a seguir...).

Por outro lado um militar deslocando-se em espaço aberto anda obrigatoriamente com a cabeça coberta (e pode usar gabardine), quer seja com boné, boina, bivaque, quico ou capacete e tal já constitui uma protecção contra a fúria dos elementos. [3]

Mas tal protecção é parcial, argumentar-se-á: o mesmo se aplica ao guarda - chuva, pode retorquir-se, já que não evita que todo o corpo se molhe.

Enfim, creio que já ilustrei o ponto.

Qual então a conclusão a tirar disto tudo?

Pessoalmente estou em crer que a (pequena) vantagem que o despacho do CEMFA, de 2 de Outubro possa trazer, é bastante inferior aos inconvenientes daí derivados - a começar pela polémica gerada - e que tem a ver sobretudo com a imagem que o militar tem de si e que a população em geral dele tem.[4]

Recorde-se as críticas que caíram sobre o General Carlos Azeredo enquanto Chefe da Casa Militar do PR, fardado de General, abrigava o então inquilino de Belém, debaixo de um guarda - chuva...

O uso de guarda - chuva quebra inquestionavelmente a marcialidade (e a “cagança”) que é apanágio de um militar [5]; além de ser de muito mau tom fazer-se continência de guarda - chuva aberto ou ver um Cabo a “dar boleia” a um Coronel debaixo de um artefacto destes, ou vice-versa.

Também não é despiciendo tal praxis na preparação psicológica para as agruras da vida militar representando, finalmente, uma tradição de sempre, onde não se evidencia qualquer malefício. Faz bem ao Moral das tropas; é um ponto de instrução; dispõe bem e é uma marca identitária. Finalmente vai contra a “paisanice” reinante.

Um outro aspecto ressalta - e creio não me enganar - das reacções havidas, os militares, por um conjunto alargado de razões, estão tão zangados com o que se passa à sua volta, nomeadamente dentro da Instituição de que fazem ou já fizeram parte, estão tão causticados pelo modo como têm sido tratados como pessoas, profissionais e servidores do País, que reagem a pés juntos a qualquer coisa que se passe e descrentes de tudo.

São assim como a floresta portuguesa no pino do Verão, à espera de uma fagulha que a incendeie.

E quando a situação fica assim, é normalmente por uma tolice qualquer menor, que se detona uma carga explosiva que ninguém está à espera que rebente.

E, no entanto, rebenta.

É preciso pensar com a cabeça e não com o coração (embora as emoções não sejam obrigatoriamente más). Algo difícil na natureza humana.

 

                                         João José Brandão Ferreira

                                        Oficial Piloto-Aviador (Ref.)



[1] Por alturas de 1970/1, creio, que no final de uma cerimónia de abertura solene de aulas na Academia Militar, presidida pelo então PR Almirante Américo Thomaz, duas companhias de alunos, comandadas pelo Comandante do Corpo de Alunos, Coronel Carmelo Rosa (de saudosa memória) estava formada na parada para prestar honras de despedida ao Chefe do Estado. Chovia desalmadamente.

O Chefe do Estado esqueceu-se ou assim não entendeu, dispensar as honras e demorou a sair, entretido que estava a conversar ou a ver se a chuva parava.

A formatura escorria água, mas não mexia uma palha (podiam até “chover” picaretas...).

Então o Coronel Carmelo Rosa entregou o comando da formatura ao oficial mais graduado a seguir e caminhou direito ao Almirante Thomaz que estava à entrada do ginásio, onde decorrera a sessão solene. Postou-se em frente a ele, apresentou armas, abateu espada e tonitruou: “V. Exª Sr. Presidente dá licença que mande destroçar? Não vê o estado em que estamos?”. Outros tempos...

[2] O guarda - chuva só pode ser usado com uniforme nº 1 ou nº 2 e sem ser em formatura. E não pode pôr em causa a saudação militar, vulgo continência.

[3] O boné até possui um francalete por cima da pala que pode ser utilizado por baixo do pescoço evitando assim que o vento o leve. Prática que caiu em desuso; à excepção da Armada, onde ainda é muito utilizado na faina a bordo. Se assim não for é muito fácil que o boné fique sepultado nas profundezas do mar...

[4] E também não se entende um “item” que passa a fazer parte do uniforme, não seja distribuído, mas tenha de ser pago…

[5] Vide, por exemplo, que as golas apertadas e a própria pala do boné servem para que os militares andem com a cabeça levantada.