“Há tempos de usar o olhar da coruja e tempos de voar
como o falcão”.
D. João II
Costuma contar-se, em roda de amigos – e se
calhar é verdade – que nunca se deve perguntar a um piloto se ele é da “Caça”.
Porque, se for,
certamente o dirá; se não for, para quê embaraçá-lo?...
A
Aeronáutica Militar, fundada em 1914, forma pilotos de caça há muitos anos. Sem
contar com os onze pilotos que foram formados em França e Inglaterra, ainda
durante a I Grande Guerra fê-lo, institucionalmente, desde 1919, com a criação
do Grupo de Esquadrilhas República, na Amadora.
Seguiram-se
esquadras nas Bases Aéreas de Sintra, Tancos e Ota, onde a “especialização” foi
ministrada.
A partir da
criação da Força Aérea, em 1952, resultante da junção da Aeronáutica Militar e da
Aviação Naval, inaugurou-se a era do jacto, resultante dos benefícios da nossa
entrada na OTAN, com a chegada dos primeiros T-33-A e F-84-G.
Mas foi com
a inauguração da Base Aérea 5, em Monte Real, em 4 de Outubro de 1959, criada
especialmente para albergar a nova frota de F-86-F, que se estabeleceu,
modernamente, a “escola da caça”, em Portugal.
Isto
porque, o F-86, conhecido na gíria por “sabre”, fora especialmente desenhado
para ser um interceptor (embora cumprisse bem missões de ataque ao solo e no
mar) e, também, porque se veio a criar e estabelecer um “espírito” muito
especial, na esquadra 51, também ela criada de raiz para operar este novo (e
moderno para a época) sistema de armas.
Foi esta
esquadra convenientemente baptizada com o nome de “Falcões”.
O curso era
longo (e dependia ainda da taxa de prontidão dos aviões…), difícil e algo
complexo. Mas era feito com alegria e entusiasmo. Durava, em média, um ano e
não havia aviões bi- lugares…
Os pilotos
que o frequentavam, independentemente do seu posto, eram (e são) apelidados de
“abibes” e sujeitos a um conjunto
de praxes e tradições durante todo o curso. Numa palavra, tinham direito a
pouca coisa, para não dizer que não tinham direito a nada…
Levavam,
ainda, muitas “bicadas” dos mais antigos, pilotos barbados e hirsutos, que
habitavam tão inolvidáveis instalações, rapidamente rebaptizadas em “palácio”.
O Palácio dos Falcões!
Palácio,
que tem a porta principal encimada pela frase marialva e intimidatória: “Por
esta porta passam os falcões mais ferozes do mundo”.
Eu, cá por
mim, estou convencido que é verdade…
É claro que
as bicadas não resultavam só em “apertos de torque”, mas eram transformadas em
escudos (não euros) de modo a que, mais tarde, pudessem financiar algumas
folganças gastronómicas devidamente regadas a ….”JP4” (se algum restaurante se
atrevesse a abrir as suas portas a tão fogosos pilotaços, é claro).
Como um
verdadeiro caçador não pode andar desarmado, parte do pecúlio servia,
outrossim, para regenerar o “stock” de foguetes e outros artefactos
pirotécnicos, com que se treinava a pontaria em terra, mesmo sem visor de tiro!
Ao
aproximar-se o fim do curso, depois de muitas horas a estudar, reflectir e
discutir; briefings e debriefings e muito suor derramado a fazer todas as
modalidades de acrobacia, tiro (ar/ar e ar/chão), navegação, formação, combate
simulado, instrumentos, etc., era preparada a cerimónia final.
Esta
cerimónia só se realizaria, porém, se após apertado escrutínio, por parte dos
doutos Falcões, os abibes:
Já dessem indícios que, dos dedinhos flácidos
despontavam garras afiadas; das serosidades nasais, se afirmava o bico adunco;
já cresciam tectrizes e rectrizes, que sustentavam voltas apertadas com mais de
quatro “Gs”; a arcadura do peito já sulcava o ar, aguentando o voo picado e
turbulência severa, e os côndilos occipitais já se ajustavam a uma rotação de
360º!
Enfim, o
traseiro fofo já começava a ficar calejado pelas asneiras feitas e o piar
fininho tinha-se transformado num crocitar audível.
Por outro
lado, os avanços na capacidade psico-motora, já permitiam a distinção entre uma
formação táctica e uma “abandalhada de marcha”; conseguiam voar dentro de
nuvens sem perder o chefe; entrar ao passo distinguindo os alvos dos
“chaparros” e fazer tiro ar/ar, sem entrar pela “manga” dentro!
Nesta fase
da sua maturação e estando já todos fartos de os aturar, preparava-se a tal
cerimónia iniciática do tipo “passagem à puberdade” das tribos africanas.
Começa com
um jantar (está na cara!) em que, no seu inicio, o “Falcão - Mor”, profere, invariavelmente,
a seguinte frase:” Determino e mando publicar que isto hoje vai acabar mal”.
Obedientes
e disciplinados, que são, os presentes afadigam-se, então, a dar cumprimento ao
determinado.
Entre
admoestações, castigos, provas diversas, discursos e malfeitorias várias, a
coisa lá vai seguindo o seu curso (escusam de estar à espera que eu conte como
é, pois não conto nada).
Aos abibes
que passam nas provas (e sobrevivem) é-lhes outorgado o anel, símbolo dos
Falcões; o lenço da esquadra e permite-se que escrevam o seu nome na parede do
balcão do bar, para o efeito reservado. Presume-se que os leitores
compreenderão as razões pelas quais muitas das assinaturas sejam, até hoje,
ilegíveis.
Ouvem-se
“Kiaks”.
Ao tempo do
F-86 ainda se oferecia um emblema, o “mach buster”, prova de que quem o possuía
tinha ultrapassado a barreira do som. O Sabre foi o primeiro avião no
inventário da FAP a conseguir fazê-lo.
E lá
começava uma vida nova para os novos Falcões ainda imberbes e tal notava-se
logo: compravam uns óculos da marca “Ray Ban”, meneavam o andar e ficavam mais
atrevidos a entrar ao passo nas “falcoas”!
Pois não
tinham eles, conseguido entrar para o clube selecto dos “suprassumos da
essência do sublime”?
*****
Nenhuma
unidade da Força Aérea entrou em combate aéreo, até hoje. Os únicos pilotos que
tiveram essa experiência combateram durante a I Guerra Mundial e na Guerra
Civil de Espanha, mas estavam dispersos em esquadrilhas francesas e espanholas.
Apenas um
deles morreu em combate aéreo, nos céus de França, numa luta desigual de um
contra cinco. Trata-se do Capitão Óscar Monteiro Torres e, ainda, abateu um
avião alemão antes de tombar. Voava um “Spad 65” e pertencia à célebre
esquadrilha das ”Cegonhas”.
Portou-se
bem o Monteiro Torres e nós não o devemos desmerecer. É uma referência.
*****
Quando se
fala em “Forças Especiais” pensa-se, por norma, em “Comandos”, “Paraquedistas”,
“Fuzileiros” e “Rangers”.
Mas um
piloto de Caça é ele, também, especial. É um combatente feroz e letal. Como os
Falcões.
O “Caçador”
actua só, mas não isoladamente; tem que ter cabeça fria, decisão rápida e nervos
de aço. Do alto da vastidão do céu – o seu domínio – ele sente-se como “dono”
do mundo e leva consigo apenas o medo, arrumado cuidadosamente numa caixinha,
mas sempre pronto a manifestar-se.
Convém, sem
embargo, ter a noção de que o piloto de caça é apenas o elo final que cumpre a
missão, para a qual é indispensável o concurso de todos os elos que compõem o
complexo sistema de Defesa Aérea: o pessoal técnico e operador das estações de
radar; as comunicações; o apoio à operação (meteorologia, tráfego aéreo, etc.);
a manutenção das aeronaves; o armamento; as infraestruturas aeronáuticas; a
organização do Comando e Controle e da tomada de decisão e mil e uma outras
minudências.
Ter tudo
isto a operar bem não está ao alcance de qualquer Força Aérea. Direi até, que
são muito poucas as que o conseguem fazer.
A FAP, com
meios limitados, é certo, está capacitada para cumprir esta missão de um modo
militarmente eficaz. Mas as ameaças para que o deixe de conseguir fazer a curto
prazo, são muito severas.
Em primeiro
lugar por motivos financeiros conhecidos – todo o sistema de Defesa Aéreo,
apesar de estar optimizado (aqui só há mesmo “bife do lombo”) é caro e não
tolera falhas nos diferentes “elos”.
E voar um
F-16 tem outras exigências estranhas ao F-86, que já de si exigia muito treino.
Existem
dois patamares a considerar: o número de horas de voo mínimas para a
proficiência táctica, e a segurança da operação. O valor da vida de um piloto
mantêm-se como sempre, a Segurança da Nação, nem por isso, e o preço das
aeronaves subiu em flecha. Até onde é que se quer ir (descer)?
Vender
aviões, como se pretende, aparenta ser um erro de visão tremendo.
Vejamos:
adquirir e manter um sistema de armas, sobretudo do nível de complexidade e
exigência como o F-16, é uma operação muito dispendiosa, difícil e demorada.
Depois, para se amortizar o melhor possível, o investimento, deve tentar-se
explorar os meios o máximo de tempo possível, com a melhor prontidão.
Ora
Portugal não vai ter condições para adquirir aviões idênticos nos próximos 50
anos…
É
preferível colocar os aviões que não se quer operar na “naftalina” do que
desfazermo-nos deles.
Às FAs
portuguesas apenas restam pouquíssimos meios dissuasores credíveis. Os F-16 que
restam são parte desses meios. E nunca se sabe o dia de amanhã.
*****
A Aviação
de Caça representa o chamado “elemento nobre do Poder Aéreo”, aquele que melhor
fundamenta e justifica a independência da Força Aérea como Ramo independente.
E é aquela
que garante a vigilância e defesa do espaço aéreo nacional, que é um função
vital de Soberania, apesar de a mesma estar, na Europa (e apenas nela) a ser
tratada, irresponsavelmente, como coisa menor ou ultrapassada.
São pois as
“asas com a cruz de Cristo” quem cumpre essa missão. O símbolo da Cruz de
Cristo não está lá por acaso. Meditem nisso.
*****
Por outro
lado as duas esquadras existentes perdem, constantemente, pilotos para as
companhias civis (e não quer dizer que não haja também problemas noutras
especialidades).
É um
problema antigo que nunca foi devidamente equacionado.
Saem pelo
dinheiro; porque voam pouco; por falta de reconhecimento social; para terem uma
vida mais estável, com mais benefícios, menor risco, mais direitos e menos
deveres.
E, ainda,
por terem desenvolvido, no mais das vezes, uma ideia muito critica (nem sempre
bem aferida) da realidade que conhecem da Força Aérea, ao mesmo tempo que têm
uma ideia pouco completa da vida de “empregado” (agora chamam “colaborador”)
numa empresa civil.
Enfim, saem
por mais isto ou aquilo.
O modo como
as coisas se passam é mau para todos (menos para a aviação civil), sobretudo
para o país no seu todo, por razões que não vou aprofundar.
Depois de
saírem, a maioria vai sentir falta da camaradagem e do “convívio” da esquadra –
uma realidade que nunca mais vão encontrar – vão deixar de sentir a adrenalina
do combate aéreo; de largar armamento; a liberdade da acrobacia; a auto-satisfação
do voo meticuloso e preciso da formação; o sereno gozo de trazer o “asa” em
formação cerrada, até à doce pista, em mínimos meteorológicos; a diversidade de
missões que jamais geram o tédio e o gosto de comandar que é o fulcro e a
essência de toda a actividade militar.
Vai
restar-lhes o eventual conforto da conta bancária (o que não é despiciendo), e
a visita a locais porventura mais agradáveis do que um esburacado teatro de
operações, em locais recônditos.
Espera-se
que quando, e se, for necessário defender o ninho onde foram criados, estejam
de novo em alerta de 15’, para de novo o fazerem.
Os avanços
têm sido muitos, mas a organização, a tecnologia, a logística, a táctica, etc.,
de pouco valem se a base espiritual estiolar e não se mantiver ao nível do
resto.
O último
Juramento de Falcão – para onde são convidados todas as “aves” ainda vivas,
cerca de 250, e a que poucas, infelizmente, respondem à chamada – contou com
três derradeiros abibes.
De facto os
cursos estão interrompidos e a renovação parou. Os leitores já, por certo,
entenderam porquê.
“Falcões Brancos” check in!