“Nenhuma coisa desta vida humana
é tão aproveitável aos viventes que a lembrança e memória dos bens e males
passados para do mal nos guardarmos, regendo a vida para nele não cairmos
segundo os bons fizeram”.
Gaspar Correia, in “Lendas da
Índia”
Fui, recentemente, acompanhar um
camarada à sua derradeira morada terrena.
É um acontecimento que sempre
acompanhou a minha vida militar (mesmo sem nunca ter entrado em combate), mas
que a roda da vida tende a tornar mais frequente relativamente àqueles que nos
são mais próximos.
Uma das características e
prerrogativas que acompanham a “condição militar” é a do direito a que cada um
tem de lhe serem prestadas honras militares fúnebres, em função do seu posto –
e, até, de algumas condecorações que ostentem – segundo fórmula regulamentar
(hoje já muito simplificada em função dos cada vez menos efectivos e meios
existentes).
Este direito é sustentado no
dever dos que ficam, tanto individual como institucionalmente, em as prestar,
condignamente, constituindo uma tradição centenária, que nada nem ninguém deve
interromper.
Os cemitérios/talhões de
militares são, também, uma homenagem póstuma e perene, a todos aqueles que
pereceram ao serviço da Pátria, incluindo os que, mortos em batalha, não
puderam usufruir das honras completas.
Mesmo aqueles cuja identidade se
perdeu, têm direito a um túmulo a eles dedicado, que entre nós se encontra no
Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, alumiado por azeite votivo e
guardado por sentinelas entre o nascer e o pôr - do - sol: o túmulo do soldado
desconhecido.
O féretro do coronel, meu muito
caro camarada de armas e de curso, passou o portal do cemitério sem que
vislumbrasse peugada da guarda – de – honra, como determinado e previsto.
Enquanto o corpo aguardava a
decisão de prosseguir para a tumba, coberto com a bandeira das quinas – a que
se devia seguir um militar transportando, numa almofada, o boné, as
condecorações e a espada (símbolo da autoridade), do defunto – chegou uma
viatura militar de onde saíu, atrasada, a dita guarda.
Uma rápida conferência entre
alguns dos presentes, decidiu pelo “mal menor” que foi o de reenviar à
procedência o pelotão (menos), com a admoestação – apesar de tudo, simpática –
de que o que aconteceu não podia ter acontecido, à qual o oficial comandante da
força retorquiu com desculpas contristadas.
Veio a saber-se, mais tarde, as
razões do sucedido, que são bem o espelho da triste realidade a que chegámos e
que se continua a querer tapar do mesmo modo que se tenta tapar o sol com uma
peneira.
Dada a extrema penúria de praças
resultado do fim do serviço militar obrigatório, e dos cada vez maiores cortes
(catastróficos) efectuados em tudo o que mexe nas FA, é muito difícil que o
efectivo das honras fúnebres esteja concentrado numa única unidade militar.
Tal implica que existam militares
escalados/de alerta em vários quarteis que é preciso convocar (por SMS,
telefone, mail?) – deve aqui referir-se que o funeral se realizou em Lisboa, em
que a distância entre a Igreja, o cemitério e as unidades militares era mínima.
Acresce a isto que as unidades
encontram-se hoje despidas de militares depois do toque de ordem (se é que
ainda existe), excepção feita para o modestíssimo número de pessoal de serviço,
pois fora do período de recruta, uma qualquer instrução ou treino, ou alteração
do grau de alerta, todo o mundo tem direito a ir para casa.
Tal deve-se (para além do já
referido), à quase “regionalização” do serviço militar (a rapaziada parece que
não pode estar longe das famílias, tão pouco das escolas – um dos grandes
atractivos do voluntariado é a possibilidade de tirar cursos) e ao facto de, aos
comandos, não lhes desagradar a ideia de verem os militares fora dos quartéis,
dado que se evitam problemas disciplinares e, desde que as mulheres passaram a
invadir a vida militar, sempre se minimiza a hipótese de cópula intramuros (Já
quando havia SMO abreviava-se sempre que possível a sua presença nas unidades
para poupar nas refeições...).
A abundância de transportes
ajuda.
Bom, convocar pessoal nestas
condições, para a cerimónia em causa aumenta enormemente o risco de atrasos e
de faltas.
Com o efectivo finalmente
concentrado, o oficial encarregado desta missão teve a presciência de indagar
se todos os presentes estavam familiarizados com a “ordem unida” que teriam que
efectuar e rapidamente se apercebeu que uma parte das praças não estava, pelo
que numa tentativa de resolver o problema, decidiu, ali mesmo, proceder a uma
instrução sumária.
Eis pois levantado o véu da causa
do atraso. Caberá a quem de direito, tirar as ilações adequadas.
As cerimónias fúnebres e as
honras militares são realizadas em memória dos mortos, mas ainda mais a pensar
nos vivos. Ou seja o exemplo é para quem fica.
Para além de uma homenagem é uma
manifestação de solidariedade de toda a família militar; um sentimento de
pertença, coesão, camaradagem, espirito de corpo, etc., de quem serviu segundo
os mesmos princípios no cumprimento de uma mesma missão.
Passa por ser um elo que a todos
liga – do passado para o presente com vista ao futuro – e que mantém a
instituição, que se pretende perene, focada nos seus valores.
Sem sombra de dúvida as FA são a
instituição nacional por excelência, em que os seus servidores são acompanhados
e cuidados desde que “assentam praça” até que dão baixa para a sepultura.
Só nessa data são desmobilizados…
Assim devia continuar a acontecer
de modo a que o profissional das armas possa continuar a “SER” em vez de apenas
“ESTAR”.
Posicionamento e filosofia que
faz confusão a muito boa gente e que, não poucos pretendem mudar radicalmente.
A velha questão da “instituição”
em contraponto ao “emprego”!
Por isso temo bem, que quando se
olhar para o fundo da questão abordada, a decisão seja a de não resolver as
causas, mas a de iludir os efeitos. Ou seja acabam rapidamente com as honras
fúnebres…
Aconselho vivamente os oficiais e
sargentos do quadro permanente a tornarem-se historiadores. Só aí, terão futuro.
Pois a continuar a actual senda,
da Instituição Militar Portuguesa, irá restar apenas uma (vaga) lembrança.