sábado, 9 de fevereiro de 2019

DAS ÚLTIMAS PROMOÇÕES NO EXÉRCITO AO COMANDO MILITAR


DAS ÚLTIMAS PROMOÇÕES NO EXÉRCITO AO COMANDO MILITAR
7/2/19


“Nenhum dos nossos inimigos se atreveu a atacar-nos quando reunimos todas as nossas forças, tanto por causa da nossa experiência nas coisas do mar, como pelos muitos destacamentos que temos em diversos lugares do nosso território”.

        In, Oração de Péricles, 430 A.C.

            O Decreto do PR nº 1-D/E/F promoveu três Majores Generais (duas estrelas), do Exército a Tenentes Generais (três estrelas). [1]
            Não estando em causa as pessoas, tão pouco a sua competência profissional, existe um facto, porém, sobre o qual gostaríamos de reflectir digamos, academicamente.
            O facto é este, um dos agora promovidos é oriundo do Serviço de Administração Militar.
            Ora isto levanta questões no campo dos princípios e da doutrina do Comando Militar.
            É certo que o actual EMFAR permite, pelo menos desde 1974, que um oficial desta “especialidade” possa ser promovido, em “situações excepcionais”, a general de três estrelas (Art.º 197- 4, do actual "emfar").
            E, de facto, de uma excepcionalidade se trata, dado que no Exército, só são conhecidos três casos anteriores a este: o do General Vergas Rocha promovido em 1 de Abril de 1981, a fim de ir ocupar o cargo de Chefe da Divisão de Administração e Finanças, do EMGFA; do General Victor Mesquita promovido em 4 de Janeiro de 1989, para desempenhar a funções de Chefe de Departamento de Finanças do EME e do Brigadeiro Costa Alves, do Serviço de Material, promovido a três estrelas, em 5 de Março de 1980, para ir ocupar o cargo de Director - Geral de Armamento (salvo erro).
            Promoções que geraram alguma controvérsia.
            Excepcional também, porque na Força Aérea e na Marinha, a promoção a oficial general de três estrelas estar reservada, respectivamente, aos Pilotos Aviadores e aos oficiais oriundos da classe de Marinha.
             Cada um destes Ramos tem, porém, uma excepção à regra: a FA através da promoção do Brigadeiro Rui Espadinha a três estrelas, em 11/8/82, sendo do quadro de engenheiros aeronáuticos; a Armada, através da promoção a Vice-Almirante de um oficial oriundo de Administração Naval, de seu nome Alfredo de Oliveira.
            O primeiro era bem visto pelo General Lemos Ferreira, tendo sido Director das Oficinas Gerais de Material Aeronáutico; o almirante teve a sua promoção em 1 de Abril de 1981, e bem relacionado com o Almirante Sousa Leitão, e foi desempenhar funções no EMGFA.
              Como curiosidade resta acrescentar que os três oficiais do Exercito, de Administração Militar mencionados, frequentaram o Instituto Militar dos Pupilos do Exército, o mesmo se passando com o actual CEME.
            A questão não é pacífica, sobretudo no seio dos oficiais cuja especialidade, classe ou serviço os impede de ultrapassarem as duas estrelas.
            Mas estes assuntos raramente são discutidos…
            Os cadetes destinados a estes quadros eram, aliás, avisados quando frequentavam a Academia Militar, a Academia da Força Aérea e a Escola Naval (até antes), do topo da hierarquia a que poderiam aspirar.
             As próprias disciplinas que lhes davam acesso, nomeadamente a Administração Militar, eram diferentes das outras.
            Alguma formação comum e frequência de cursos de promoção em conjunto, há cerca de duas décadas, acaloram o debate.
            Outro tipo de divergência (ainda mais grave) – a talhe de foice – tem ocorrido na GNR, com o “forcing” de oficiais cuja formação não foi feita na Academia Militar, quererem ter acesso ao generalato, o que tem sido (mal) apoiado por políticos do MAI, por razões que não vamos agora aduzir.
            A Força Aérea, por seu lado, tinha aberto uma outra “excepção”, quando decidiu promover oficiais dos quadros técnicos, a Coronel, nos idos dos anos 80, quando até então, apenas podiam ser promovidos a Tenente Coronel.
            A estes oficiais também lhes estava vedado comandar unidades, mas houve numerosas excepções.
            Também se passou a nomear oficiais que não eram das Arma para cargos de Adidos de Defesa/Militar, nomeadamente oficiais do quadro de Administração Militar e Aeronáutica.
            Curiosa e significativamente, os países para onde estes oficiais eram (e são) nomeados situam-se em África…
            Em síntese as excepções são muitas – o que levanta a questão de porquê uns e não outros – tendo a atenuá-las, razões de falta de pessoal e de, em determinado período, permitir o descongestionamento nas promoções de alguns quadros, que estavam inflacionados de oficiais por via das necessidades da guerra terminada nos idos de 1974/5.
            Mas voltando à questão anterior o princípio doutrinário a preservar (se é que tal e pode considerar um princípio doutrinário – e que nos parece estar certo – é o de que quem combate, comanda.
            E quem combate, no Exército, são os oficiais (só estamos a falar destes) das Armas (Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia Militar e Engenharia de Transmissões – e sabe-se a controvérsia que houve para passar esta última, a “Arma”) e não os dos serviços (“que apoiam”) como é o caso do Serviço de Saúde, o Serviço de Material e o Serviço de Administração Militar, cujos oficiais são formados na Academia Militar.
            Por isso, para além do “Comando” existe a “Direcção” e a Chefia”.
            Dito de outra forma, quem deve comandar são os oficiais que, sendo oriundos de uma Academia Militar – é para isso que elas existem - estão na “linha de emprego” dos meios e não os que estão na “linha de sustentação” dos meios. Estes últimos dirigem e chefiam.
            Mas porquê, perguntarão ainda os mais relutantes? Pois porque o combate é o fim último da preparação militar e só quem está treinado para o mesmo, está em condições de entender e abarcar as envolventes e as prioridades da complexidade do campo de batalha
            Senão, pela mesma lógica que agora foi utilizada, poderíamos um dia vir a ter como Chefe de Estado-Maior, um oficial com a especialidade de médico.
            Lembra-se que os veterinários (por enquanto) apenas podem ascender a Tenente-Coronel…
            E agora que temos um general de três estrelas de Administração Militar nada obsta a que não possa ser o futuro CEME…
            Ou então, porque não, um qualquer membro da Comissão Parlamentar de Defesa pode vir a ser chefe de estado-maior. Porque não? Dá-se-lhes uns créditos, pim, pam, pum, já está!...
            Não digam que não é possível, pois eu já vi de tudo o que nunca esperava ver e até já tivemos em época de suprema rebaldaria, um capitão graduado em general de três estrelas, Comandante da Academia Militar!...

                                                                    *****
            Sabe-se que o oficial agora em causa foi escolhido por, entre os possíveis, ter o perfil mais adequado para uma determinada função: o Comando Logístico.
            Não contestamos a apreciação e deverá, infelizmente ser o caso, sabendo-se quem fez a escolha.
            Mesmo assim, por uma questão do tal “Princípio” e da tal doutrina (que pelos vistos não existe) a decisão deveria ter sido ponderada de outro modo.
            E aqui levanta-se uma outra questão: é certo que cada um de nós pelas suas experiências, gosto e saber, estará melhor numa determinada função do que noutra, e tal não deixa de ser verdade no âmbito dos oficiais generais.
            No entanto, ao nível que estamos tratando (e um general é um “generalista”), qualquer oficial general (das Armas) deve poder ocupar seja que função ou comando exista. E não há muitos. E tal tem muito a ver com as promoções feitas anteriormente.
            Também é verdade que há, hoje em dia, muito poucos oficiais generais de três estrelas e que o tempo de permanência no posto não é dos mais alargados (ou seja há pouco por onde escolher), mas isso levar-nos-ia a outras discussões.
            Algo que também afecta o “status quo” é a existência do posto de Brigadeiro General.
            Esta “novidade” não nos parece ter sido boa ideia.
            Começou por ser ideia do Exército, tendo sempre a oposição da Marinha e Força Aérea.
            A “racional” tinha a ver com os cargos e funções NATO e, eventualmente outros, que eram ocupados por um oficial desse posto (general de uma estrela), e “nós” não podermos concorrer a tais lugares por não termos esse posto nas nossas fileiras.
            Com o devido respeito a argumentação não convencia, nem convence. Em primeiro lugar porque havia muito poucos cargos desses a que poderíamos concorrer; depois porque se tal fosse julgado de importância maior, facilmente se poderia enviar um coronel ou capitão de mar-e-guerra tirocinado, ou, mais facilmente se poderia graduar um qualquer oficial desse nível naquele posto.
            Além disso o leque de postos em oficial general passou a ser de quatro (mais do que no âmbito dos oficiais superiores) numas Forças Armadas a caminho da extinção.
            Tanto se andou nesta discussão do sexo dos anjos, que a proposta acabou por ser aprovada (confesso que não tive pachorra para ir saber em que moldes, nem quando), algures pelo início do século XXI, o que logo foi aproveitado pelos políticos para se diminuir o número de oficiais de duas e três estrelas transformando a pirâmide num paralelepípedo irregular, poupando uns trocos e fazendo um "downgrading" de várias funções.
            Consequências espúrias que normalmente não se prevêem…

                                                            *****
            Ora onde queremos chegar é que no âmbito tratado – como em tantos outros – haja princípios e doutrina, no seio dos Ramos (e não se ponham, deslumbrados, a copiar acriticamente um exemplo qualquer do que se passa “lá fora”), pois há questões que são, por assim dizer, pilares onde assenta o funcionamento da Instituição Militar.
            Ora o Comando e a Liderança são o fulcro de toda a actividade militar.
            Isto é, aquilo que for considerado importante tem de estar escorado e aceite solidamente, a fim de que as questões fundamentais sejam tratadas de um modo racional.
            Neste âmbito o “EMFAR” parece ter excepções a mais…
            Mais uma vez se frisa a necessidade de preservar princípios; mudar a doutrina só depois de reflexão aprofundada e ser flexível quanto a estratégias, tácticas e técnicas.
            Em conclusão as grandes decisões nas Forças Armadas têm que estar sustentadas em princípios e doutrina; a coerência tem que acompanhar toda a estrutura; idem para Leis e Regulamentos e as excepções, elas próprias, só existirem excepcionalmente, para que as coisas, as decisões e as pessoas não andem ao livre arbítrio de quem ocupa transitoriamente uma função ou cargo; ao alvedrio de amizades ou ao interesse do momento.
            Resumindo: deve-se definir muito bem quem e porquê pode atingir o topo da hierarquia e tal não deve dar azo a excepções, por incompatibilidade manifesta. E não dar a parecer que a Instituição Militar é uma manta de retalhos.



                                                     João José Brandão Ferreira
                                                     Oficial Piloto Aviador (Ref.)


[1] II Suplemento, Série I, de 2019-01-09, 11773162, do DR nº 6/2109.

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