terça-feira, 1 de novembro de 2022

Oração perigosa

16 freiras carmelitas morreram há 230 anos (Novembro de 1792), por causa de uma oração perigosa, inspirada num sonho de um século antes. Por incompetência da polícia, a 17ª carmelita não foi morta e por ela conhecemos em pormenor os últimos dias da comunidade. Emocionante!

A prioresa do mosteiro carmelita de Compiègne, em França, encontrou um relato, com quase 100 anos, de uns sonhos ou visões de uma antiga freira do convento, antes de se fazer carmelita, segundo o qual, algumas delas seriam chamadas a «seguir o Cordeiro». No contexto cristão, sabe-se o que isto significa. No Antigo Testamento, o cordeiro era a vítima oferecida em sacrifício pelos pecados, imagem de Cristo morto por nós na Cruz. Jesus Cristo é por isso chamado muitas vezes o «Cordeiro Pascal». Quando Jesus aparece nas margens do Jordão, João Baptista apresenta-O: «Eis o Cordeiro de Deus, Aquele que tira o pecado do mundo!». A expressão aparece muito nas Escrituras e a liturgia Eucarística repete-a. Por exemplo, antes de comungar, o povo proclama três vezes a sua fé na presença real de Jesus: «Cordeiro de Deus, que tirais o pecado do mundo…». Ao ler os apontamentos antigos, a prioresa viu neles um convite profético à sua comunidade e interpretou a essa luz o que se ia passar.

Estala a revolução francesa e, com a desculpa de libertar a França, o Regime do Terror deixa o país fica a ferro e fogo. A perseguição à Igreja foi dura e minuciosa, porque os revolucionários queriam libertar os católicos, libertar os padres, libertar as freiras e os frades e estavam dispostos a usar todos os meios contra quem não quisesse ser libertado. As pressões para libertar os católicos foram em rápido crescendo. Por exemplo, para acabar com os conventos femininos carmelitas, suspenderam os votos religiosos e submeteram as freiras a interrogatórios para as fazer renunciar à sua vocação. Para grande fúria dos revolucionários, todas —e a generalidade das freiras de todas as ordens religiosas— recusaram-se a ser libertadas e decidiram permanecer fiéis até à morte. Proibiu-se então o hábito de freira; pouco depois, expulsaram-se as freiras e o Estado apropriou-se dos mosteiros e do seu recheio.

As carmelitas de Compiègne refugiaram-se em quatro localidades, em condições de enorme miséria. Pelo país, as guilhotinas, inventadas há pouco tempo, trabalhavam freneticamente a cortar a cabeça dos que se recusavam a ser libertados.

Perante esta tragédia, a prioresa, consulta às freiras mais velhas se a comunidade deveria oferecer a sua vida pela salvação da França. A primeira reacção de algumas foi de pânico mas, pouco depois, pediram-lhe desculpa pela falta de coragem. A prioresa faz então a proposta a toda a comunidade. A partir de então, todas elas passaram a recitar uma oração, em que se ofereciam a Deus pela salvação da França, para que não continuassem a ser mortas tantas pessoas e para que as multidões que estavam presas fossem libertadas.

Cada uma rezava em silêncio, mas o demónio não podia consentir tamanha generosidade. Os soldados irromperam nos refúgios e prenderam as irmãs. Pouco depois, o Presidente da Câmara descobre que a pobreza era tal que nenhuma delas tinha outra roupa para vestir senão o hábito religioso. Tal crime não tinha perdão. São enviadas para Paris, para serem julgadas e condenadas à morte. A sentença é a lengalenga do costume: «Não passam de um bando de rebeldes, de sediciosas, que nutrem no coração o desejo e a esperança criminosa de ver o povo francês à mercê das espadas dos seus tiranos e escravo dos padres, tão sanguinários quanto impostores, e de ver a liberdade engolida pelo mar de sangue que as suas maquinações infames derramaram em nome do Céu! Etc., etc., etc.».

As freiras compreenderam que se cumpria o misterioso chamamento a oferecerem a vida. Levam-nas prisioneiras pelas ruas de Paris enquanto elas cantam o Ofício Divino, a oração habitual dos conventos. A cidade escuta comovida a voz daquelas mulheres paupérrimas, vulneráveis, exaustas, mas com um amor a Deus e aos homens que parecia do outro mundo.

Os algozes não têm ânimo para as mandar calar. Esperam que terminem o Ofício. E as orações pelos moribundos. E o cântico do Te Deum (um longo hino de louvor e acção de graças). E o Veni creator (um cântico ao Espírito Santo). E, finalmente, a renovação dos seus votos como carmelitas.

Sobem ao estrado, recebem a bênção da prioresa, beijam uma imagem de Nossa Senhora e são imoladas, como o Cordeiro oferecido em sacrifício.

Robespierre, o principal facínora que promovia o Terror, foi guilhotinado 11 dias depois. Muitos pensam que as orações das carmelitas de Compiègne fizeram a diferença, mudaram a alma da França e interromperam a carnificina. Pio X beatificou as 16 carmelitas como mártires e o Vaticano informou há dias que está a estudar o processo de canonização.



Gravura das carmelitas de Compiègne rezando e cantando, antes de serem mortas.

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