A FORMAÇÃO DOS
PILOTOS CIVIS
11/9/17
“Um piloto é
uma pessoa normal em excelentes condições psicofísicas”
Definição “clássica “de
piloto
A formação dos pilotos civis é
hoje regulada nos países da União Europeia, fundamentalmente pelo Regulamento
1178, da UE, de 3 de Novembro de 2011, que foi também adoptado pelo nosso País.[1]
A
nível da ANAC – Autoridade Nacional para estes assuntos, dependente do
Secretário de Estado dos Transportes – alguns dos aspectos neste âmbito são
regulados por CIAs (Circulares de Informação Aeronáutica).
À ANAC cabe ainda supervisionar,
fiscalizar, regular, controlar e manter registo de todas as actividades relacionadas
com a instrução de pilotagem a cargo das escolas de pilotagem, licenciadas e
aprovadas por aquela Autoridade: as ATO “Approved
Training Organization”.
Os
requisitos para um cidadão poder, por exemplo, tirar um curso integrado de piloto de linha aérea (ATPL - que é, digamos, o
mais elevado), obriga a que a idade mínima seja de 18 anos (para a emissão da licença que, no início da sua carreira é a de piloto comercial – a de
piloto de linha aérea exige, entre outras coisas, pelo menos 1500 horas de voo
como piloto), ter o 12º ano de escolaridade, ou equivalente, incluíndo
as cadeiras de Matemática e Física, e passar num exame médico efectuado em
organização licenciada para o efeito (classe 1),
mediante uma tabela de exames aprovada. [2]
A
partir daqui a parte administrativa, cumprimento das aulas teóricas,
efectivação do programa de voos (tudo especificado no tal Regulamento supra e
traduzido em manuais aprovados para cada escola), marcação de exames e fluxo da
burocracia correspondente, passa para as ATOs.
O curso
tem a duração máxima de 36 meses.
O
extraordinário desenvolvimento da aviação comercial (quer de transporte de
passageiros, carga ou trabalho aéreo) levou a que a necessidade de tripulações,
nomeadamente pilotos, se tornasse geométrica, por vezes exponencial.[3]
A
tendência não mostra sinais de abrandar e as relações de trabalho vão desde o
capitalismo selvagem à ditadura dos sindicatos.
Ora
tudo isto levou à massificação da formação e ao florescimento de um negócio
apetecível.
Na
necessidade de formação de pilotos para a aviação civil deve ser tido em conta
ainda, o cada vez menor número de pilotos militares que passam ao mercado
civil, dado as Forças Aéreas (onde a instrução é muito
mais dura e completa) terem vindo a ser reduzidas drasticamente em todos
os países ocidentais.
Ora
a combinação da ”massificação” com a variável “negócio” pode dar (e está a dar)
muito maus resultados.
Em
primeiro lugar porque na massificação (há quem lhe chame “democratização”) há
uma tendência irresistível para baixar os padrões de exigência e qualidade
aferindo-se cada vez mais por baixo. Por outro lado a supervisão e o controlo
da qualidade torna-se mais difícil pelo volume de meios envolvidos.
A
questão do negócio pode tornar toda a questão “explosiva”. Porquê?
Naturalmente,
por causa da natureza humana.
Em
primeiro lugar, pela ambição desmedida do lucro – não confundir com a razoável
necessidade de se obter “superavit”, sem o que nenhuma empresa sobrevive; depois
pela necessidade de as empresas se tornarem competitivas a fim de atraírem potenciais
clientes; finalmente porque o constante disparar dos custos dos ”factores de
produção” (manutenção, taxas aeroportuárias, licenças, combustível, etc.), onde
os salários dos profissionais envolvidos são sempre os parentes pobres!
Para já não falar, no caso
português, da carga fiscal massiva imposta por sucessivos desgovernos, que traz
a totalidade das empresas asfixiadas em termos financeiros.
Finalmente
a eventual acção de “lobbies” da “indústria” aeronáutica, em quem legisla, não
é de descurar…
Ora tudo isto constitui uma pressão
imensa que leva a que se tente compensar com a redução de horas de voo, e, ou trocá-las
por simulador; na diminuição ou exclusão de treino em manobras essenciais (por
ex. perdas, “vrilles”, atitudes anormais); menor qualidade dos equipamentos e
sua manutenção, etc.
Sempre
com a desculpa da evolução tecnológica e dos automatismos, por pano de fundo, o
que finalmente começou a ser posto em causa com a tragédia do voo da Air Fance
447, rio de Janeiro – Paris, em 31/5/2009, que causou 228 mortos.
Como
factores adicionais de problemas, em todo este âmbito, temos o facto de cada
vez, ser mais difícil encontrar instrutores de voo disponíveis (não existe nada
que se assemelhe a uma carreira de instrutor e a função é mal paga – é aliás o parente
pobre da aviação (idem para examinadores); a selecção dos alunos é cada vez
pior e as empresas passaram a ter a péssima postura de tratarem os alunos como
clientes que pagam (alguns julgam até que têm direito garantido ao brevet…) e
por isso só têm direitos, ao contrário de os tratar e assumir que eles são
instruendos que necessitam demonstrar que têm motivação, capacidade, querer e
proficiência para conseguir uma boa prestação e assim obterem honestamente os
seus diplomas e qualificações.
É
preciso não esquecer que todo este estado de coisas deriva em grande parte da
desastrosa permissividade, facilitismo, indisciplina, falta de autoridade e
qualidade e das experiências pedagógicas delirantes, de que sofre o ensino
privado e, sobretudo, público, português. [4]
E da cada vez maior falta de
educação existente, derivada da desagregação da família e do relativismo moral
reinante.
O que contaminou toda a
sociedade.
E
se isto não deve ser assim em todas as profissões creio que o pessoal navegante
deve estar no grupo mais selecto, onde esta necessidade é prioritária. Penso
não ter que explicar porquê.
Ora
a única entidade que está, isto é, devia estar capacitada para garantir a
qualidade de todo o ensino de pilotagem, e não só, é a ANAC, e o Governo e a AR
- aqueles que legislam sobre o assunto.
Infelizmente
desde a fundação daquela autoridade, em 1946 (DL 36061, de 27/9), com o nome de
Direcção Geral de Aeronáutica Civil, raros foram os momentos (se é que algum),
em que esta Autoridade esteve minimamente apetrechada em termos de meios,
organização e liderança para bem cumprir a sua missão.[5]
Creio
que esta afirmação não irá escandalizar qualquer cidadão que destes assuntos
tenha um conhecimento, mesmo que ténue.
Ora
a legislação internacional da União Europeia onde, por norma, nos integramos
acriticamente, não impede salvo melhor opinião, que cada país (e por enquanto
ainda há países!) não possa definir critérios mais apertados que tenham em
conta os seus interesses ou especificidades próprias.
Deste
modo parece haver um conjunto de medidas que urge tomar.
E
a primeira é esta: é urgente tornar um curso de piloto comercial equivalente a
um curso superior. A uma licenciatura que mais tarde, para quem quiser e
estiver habilitado, possa evoluir para um mestrado e um doutoramento.
É
perfeitamente desajustado e desprestigiante ter um comandante de linha aérea,
cujas habilitações se fiquem pelo 12º ano de escolaridade e por um “curso técnico”…
Com
a inacreditável agravante de a legislação obrigar a que estejam incluídas as cadeiras
de matemática e física, mas simultaneamente se permita que haja candidatos a
pilotos e oficiais de operações de voo, que se possam inscrever nas ATOs sem
estas cadeiras e frequentem um micro curso de 15 horas em cada uma daquelas
matérias (e passem) antes de iniciarem as aulas do curso propriamente ditas.
O
estado actual da organização social e do mercado faz com que este desiderato
possa mais facilmente ser atingido através de parcerias entre Universidades e
ATOs.
Esta
modalidade permitiria ainda implementar a obrigatoriedade da existência da
disciplina de educação física, dada a importância que a boa condição física tem
num piloto, e sabendo-se a deplorável situação em que a esmagadora maioria dos
candidatos a tripulantes chegam à porta das escolas.
Além
disso estas aulas deviam visar os conhecimentos para a vida, para que estes
futuros profissionais estejam aptos a manter a sua condição física à medida que
a idade avança.
Outro
aspecto em que o facilitismo (e a redução de custos) entrou a imperar, tem sido
nas inspecções médicas. Mesmo não tendo conhecimentos apropriados nessa área
arrisco-me a dizer que a triagem está facilitada e que, por exemplo, o exame conhecido
por eletroencefalograma nunca deveria ter sido eliminado, para já não falar na
área da Psiquiatria que é pura e simplesmente ignorada.
Não
é minimamente razoável, outrossim, que os candidatos a piloto (ou outros) não
sejam sujeitos obrigatoriamente a testes psicotécnicos eliminatórios antes de
começarem os cursos.
Tal
facto deixa ao livre arbítrio de cada um e ao das escolas, fazerem-no ou não;
faz entrar nos cursos uma quantidade elevada de gente que não tem capacidade
mínima para a frequência do (s) curso (s) – emperrando todo o sistema – deixa
passar entre as malhas pessoas que melhor seria terem escolhido outra profissão,
além do que vai originar, mais tarde, uma quantidade de gente frustrada (por
não arranjarem emprego), ou profissionais com limitações, na sua vida futura.
Ora
mais uma vez aqui a acção da ANAC devia ser fundamental, a fim de garantir uma
descriminação positiva entre os candidatos e entre as ATOs, bem como a de
assegurar que as entidades que estejam devidamente licenciadas para efectuarem
exames médicos e psicotécnicos, sejam auditadas frequentemente a fim de impedir
que o “negócio” e a “concorrência desleal” passe para esse âmbito.
Do
mesmo modo que deve haver um sistema que permita fazer inspecções inopinadas, a
fim de detectar quaisquer uso de substâncias psicotrópicas ou excesso de álcool,
nos corpos docentes e discentes.
O
serviço de medicina aeronáutica da ANAC deveria estar habilitado, ainda, a
receber e tratar casos de alunos com problemas psicológicos ou psiquiátricos
que se venham a revelar durante os cursos.
Seria ainda muito conveniente que
todos os assuntos que levantam problemas de interpretação e possam afectar o
normal desenvolvimento da actividade das ATOs fossem objecto de CIAs a fim de
se uniformizarem procedimentos – uma palavra - chave em toda a aviação – e, ou
garantir a justiça relativa entre os intervenientes – uma pedra de toque nas
relações humanas.
Seria ainda de boa prática,
disciplinar os contactos funcionais e hierárquicos entre as ATO versus ANAC,
bem como os contactos entre a entidade e os alunos, que regulamentarmente se
devem fazer através das ATOs e vice – versa.
Complementarmente a tudo isto e às
sempre necessárias e desejáveis inspecções periódicas ou reuniões avulsas
seria, estamos em crer, de ponderar a criação de um “órgão/fórum” a nível da
ANAC que reunisse anual ou bianualmente, com o fito de fazer o balanço da
actividade de instrução no âmbito aeronáutico civil, onde se fariam representar
todas as entidades tidas por pertinentes, e onde também se pudessem discutir os
problemas que houvesse neste campo de actividade.
Que é onde tudo começa.
Finalmente
será de eliminar liminarmente a possibilidade de se aceitarem candidatos com o
12º ano sem matemática e física.
E
será de ponderar, ainda, que as ATOs ou a ANAC obriguem à realização de exames
prévios sobre conhecimentos gerais, dado não se poder confiar nos conhecimentos
dos jovens formados nas escolas secundárias, que se deveriam voltar a chamar
liceus e escolas comerciais e técnicas.
De
saudosa memória.
É
que, a maioria dos alunos que frequentam um curso de pilotagem não sabem,
sequer, a tabuada. E juro que falo com conhecimento de causa!
A complicar as coisas inventou-se
um sistema de ensino modular. Isto é, para os alunos que não conseguem
finalizar o curso no prazo previsto (36 meses), é-lhes agora permitido
continuarem o curso por módulos (nocturno, instrumentos e multimotor), desde
que tenham cumprido determinados requisitos.
Ora tal modalidade além de tender
a causar uma gestão caótica nos cursos, subverte por completo uma “base
doutrinária”, há muito estabelecida na Aviação e que é esta: um candidato a
piloto tem não só de ser capaz de se tornar proficiente num conjunto de
matérias, exercícios e procedimentos, mas também de o fazer num determinado
período de tempo.
Não é como outro curso qualquer
que um “aluno” pode continuar aluno “ad eternum”.
E sabem que mais? Esta doutrina
está, a vários títulos, correcta!
E já nem vou falar na “licença de piloto “multi – crew (MPL), e no “e -
learning”, ou ensino à distância…
*****
Dado que os cursos de pilotagem
são muito caros e desenvolvem-se num relativo curto espaço de tempo, devem ser
pensadas formas de financiamento atrativas, que permitam aos candidatos a
pilotos e ATOs, suportar os custos de formação inerentes, sob pena de todo o
sistema colapsar ou, no mínimo, não se conseguir a breve trecho o número de
pilotos em quantidade e qualidade, que o mercado requer.
Tudo
o que se passa com o espectro dos alunos que vêm frequentar um curso de
pilotagem civil – a sua idade, formação, motivação, trilho de vida, etc. –
daria um interessante estudo sociológico. Mas ainda ninguém se lembrou de o
fazer.
ANAC,
sindicatos, associações de pessoal navegante, indústria aeronáutica, empresas
de aviação, etc., poderiam aqui ter um papel relevante.
É
que neste âmbito, como noutros, o único lugar onde o sucesso vem antes do
trabalho, é no dicionário.
Se
tiverem dúvidas, mesmo assim, meditem no lema do ministério da educação de
Singapura (que bem deveria ser copiado para o de Portugal): se acham que a
Instrução é cara, experimentem a ignorância!
João José Brandão
Ferreira
TCor Pil AV/Comd. Linha Aérea/Instrutor de voo
[1]
Aprovado no seguimento do Regulamento (EC) nº 216/2008, de 20 de Fevereiro, do
Parlamento Europeu.
[2]
A legislação que se aplica em Portugal é a da UE;
porém, quando a legislação europeia é omissa e existe legislação nacional,
aplica-se esta, desde que não conflitua com aquela. O que regulava do anterior
estes aspectos era o decreto – lei 17- A/2004, de 16 de Janeiro (que sofreu uma
alteração dos seus artigos 28 e 29, em Agosto desse ano), que postula (e é
idêntico para o curso de piloto comercial - CPL) “ a) ter completado 18 anos de
idade à data de emissão da licença; b) ter completado o 12º ano de escolaridade
ou equivalente em área que inclua as disciplinas de Matemática e Física ou
demonstrar conhecimentos de matemática e física mediante aprovação em exame a
realizar pelo INAC, tendo neste último caso, de ter completado, pelo menos, a
escolaridade mínima obrigatória”.
Ora aqui levanta-se a dúvida se os
candidatos a admitir têm de ter o 12º ano ou basta o 9º (que representa a
escolaridade mínima obrigatória, em Portugal, mais os tais exames (ridículos)
nas disciplinas apontadas. Presume-se que o decreto-lei esteja em vigor, já que
o Reg. 1178, é omisso nestes pontos.
[3]
Em artigo credível, do caderno de Economia do “Expresso” de 19/8/17, é afirmado
que serão necessários 617 mil pilotos, para a aviação comercial, até 2035.
[4]
Eu sei que não é só o nosso, mas com o mal dos outros posso eu bem, como soi
dizer-se.
[5]
Decreto – Lei 36061, de 27 de Dezembro.
Prezado Sr. Tenente Coronel Brandão Ferreira
ResponderEliminarSinceros votos de um dia muito feliz.
Que ele se repita, por muitos anos, na companhia dos seus entes queridos e, para que continuemos a ter o prazer de ler os seus magníficos escritos.
Com os meus melhores cumprimentos.
Manuel A.