terça-feira, 19 de setembro de 2017

A FORMAÇÃO DOS PILOTOS CIVIS



A FORMAÇÃO DOS PILOTOS CIVIS
11/9/17


“Um piloto é uma pessoa normal em excelentes condições psicofísicas”
  Definição “clássica “de piloto

               

A formação dos pilotos civis é hoje regulada nos países da União Europeia, fundamentalmente pelo Regulamento 1178, da UE, de 3 de Novembro de 2011, que foi também adoptado pelo nosso País.[1]
                A nível da ANAC – Autoridade Nacional para estes assuntos, dependente do Secretário de Estado dos Transportes – alguns dos aspectos neste âmbito são regulados por CIAs (Circulares de Informação Aeronáutica).
             À ANAC cabe ainda supervisionar, fiscalizar, regular, controlar e manter registo de todas as actividades relacionadas com a instrução de pilotagem a cargo das escolas de pilotagem, licenciadas e aprovadas por aquela Autoridade: as ATO “Approved Training Organization”.
                Os requisitos para um cidadão poder, por exemplo, tirar um curso integrado de piloto de linha aérea (ATPL - que é, digamos, o mais elevado), obriga a que a idade mínima seja de 18 anos (para a emissão da licença que, no início da sua carreira é a de piloto comercial – a de piloto de linha aérea exige, entre outras coisas, pelo menos 1500 horas de voo como piloto), ter o 12º ano de escolaridade, ou equivalente, incluíndo as cadeiras de Matemática e Física, e passar num exame médico efectuado em organização licenciada para o efeito (classe 1), mediante uma tabela de exames aprovada. [2]
                A partir daqui a parte administrativa, cumprimento das aulas teóricas, efectivação do programa de voos (tudo especificado no tal Regulamento supra e traduzido em manuais aprovados para cada escola), marcação de exames e fluxo da burocracia correspondente, passa para as ATOs.
              O curso tem a duração máxima de 36 meses.
                O extraordinário desenvolvimento da aviação comercial (quer de transporte de passageiros, carga ou trabalho aéreo) levou a que a necessidade de tripulações, nomeadamente pilotos, se tornasse geométrica, por vezes exponencial.[3]
                A tendência não mostra sinais de abrandar e as relações de trabalho vão desde o capitalismo selvagem à ditadura dos sindicatos.
                Ora tudo isto levou à massificação da formação e ao florescimento de um negócio apetecível.
                Na necessidade de formação de pilotos para a aviação civil deve ser tido em conta ainda, o cada vez menor número de pilotos militares que passam ao mercado civil, dado as Forças Aéreas (onde a instrução é muito mais dura e completa) terem vindo a ser reduzidas drasticamente em todos os países ocidentais.
                Ora a combinação da ”massificação” com a variável “negócio” pode dar (e está a dar) muito maus resultados.
                Em primeiro lugar porque na massificação (há quem lhe chame “democratização”) há uma tendência irresistível para baixar os padrões de exigência e qualidade aferindo-se cada vez mais por baixo. Por outro lado a supervisão e o controlo da qualidade torna-se mais difícil pelo volume de meios envolvidos.
                A questão do negócio pode tornar toda a questão “explosiva”. Porquê?
                Naturalmente, por causa da natureza humana.
                Em primeiro lugar, pela ambição desmedida do lucro – não confundir com a razoável necessidade de se obter “superavit”, sem o que nenhuma empresa sobrevive; depois pela necessidade de as empresas se tornarem competitivas a fim de atraírem potenciais clientes; finalmente porque o constante disparar dos custos dos ”factores de produção” (manutenção, taxas aeroportuárias, licenças, combustível, etc.), onde os salários dos profissionais envolvidos são sempre os parentes pobres! 
              Para já não falar, no caso português, da carga fiscal massiva imposta por sucessivos desgovernos, que traz a totalidade das empresas asfixiadas em termos financeiros.
             Finalmente a eventual acção de “lobbies” da “indústria” aeronáutica, em quem legisla, não é de descurar…
               Ora tudo isto constitui uma pressão imensa que leva a que se tente compensar com a redução de horas de voo, e, ou trocá-las por simulador; na diminuição ou exclusão de treino em manobras essenciais (por ex. perdas, “vrilles”, atitudes anormais); menor qualidade dos equipamentos e sua manutenção, etc.
              Sempre com a desculpa da evolução tecnológica e dos automatismos, por pano de fundo, o que finalmente começou a ser posto em causa com a tragédia do voo da Air Fance 447, rio de Janeiro – Paris, em 31/5/2009, que causou 228 mortos.
                Como factores adicionais de problemas, em todo este âmbito, temos o facto de cada vez, ser mais difícil encontrar instrutores de voo disponíveis (não existe nada que se assemelhe a uma carreira de instrutor e a função é mal paga – é aliás o parente pobre da aviação (idem para examinadores); a selecção dos alunos é cada vez pior e as empresas passaram a ter a péssima postura de tratarem os alunos como clientes que pagam (alguns julgam até que têm direito garantido ao brevet…) e por isso só têm direitos, ao contrário de os tratar e assumir que eles são instruendos que necessitam demonstrar que têm motivação, capacidade, querer e proficiência para conseguir uma boa prestação e assim obterem honestamente os seus diplomas e qualificações.
                É preciso não esquecer que todo este estado de coisas deriva em grande parte da desastrosa permissividade, facilitismo, indisciplina, falta de autoridade e qualidade e das experiências pedagógicas delirantes, de que sofre o ensino privado e, sobretudo, público, português. [4]
               E da cada vez maior falta de educação existente, derivada da desagregação da família e do relativismo moral reinante.
               O que contaminou toda a sociedade.
                E se isto não deve ser assim em todas as profissões creio que o pessoal navegante deve estar no grupo mais selecto, onde esta necessidade é prioritária. Penso não ter que explicar porquê.
                Ora a única entidade que está, isto é, devia estar capacitada para garantir a qualidade de todo o ensino de pilotagem, e não só, é a ANAC, e o Governo e a AR - aqueles que legislam sobre o assunto.
                Infelizmente desde a fundação daquela autoridade, em 1946 (DL 36061, de 27/9), com o nome de Direcção Geral de Aeronáutica Civil, raros foram os momentos (se é que algum), em que esta Autoridade esteve minimamente apetrechada em termos de meios, organização e liderança para bem cumprir a sua missão.[5]
                Creio que esta afirmação não irá escandalizar qualquer cidadão que destes assuntos tenha um conhecimento, mesmo que ténue.
                Ora a legislação internacional da União Europeia onde, por norma, nos integramos acriticamente, não impede salvo melhor opinião, que cada país (e por enquanto ainda há países!) não possa definir critérios mais apertados que tenham em conta os seus interesses ou especificidades próprias.
                Deste modo parece haver um conjunto de medidas que urge tomar.
                E a primeira é esta: é urgente tornar um curso de piloto comercial equivalente a um curso superior. A uma licenciatura que mais tarde, para quem quiser e estiver habilitado, possa evoluir para um mestrado e um doutoramento.
                É perfeitamente desajustado e desprestigiante ter um comandante de linha aérea, cujas habilitações se fiquem pelo 12º ano de escolaridade e por um “curso técnico”…
                Com a inacreditável agravante de a legislação obrigar a que estejam incluídas as cadeiras de matemática e física, mas simultaneamente se permita que haja candidatos a pilotos e oficiais de operações de voo, que se possam inscrever nas ATOs sem estas cadeiras e frequentem um micro curso de 15 horas em cada uma daquelas matérias (e passem) antes de iniciarem as aulas do curso propriamente ditas.
                O estado actual da organização social e do mercado faz com que este desiderato possa mais facilmente ser atingido através de parcerias entre Universidades e ATOs.
                Esta modalidade permitiria ainda implementar a obrigatoriedade da existência da disciplina de educação física, dada a importância que a boa condição física tem num piloto, e sabendo-se a deplorável situação em que a esmagadora maioria dos candidatos a tripulantes chegam à porta das escolas.
                Além disso estas aulas deviam visar os conhecimentos para a vida, para que estes futuros profissionais estejam aptos a manter a sua condição física à medida que a idade avança.
                Outro aspecto em que o facilitismo (e a redução de custos) entrou a imperar, tem sido nas inspecções médicas. Mesmo não tendo conhecimentos apropriados nessa área arrisco-me a dizer que a triagem está facilitada e que, por exemplo, o exame conhecido por eletroencefalograma nunca deveria ter sido eliminado, para já não falar na área da Psiquiatria que é pura e simplesmente ignorada.
                Não é minimamente razoável, outrossim, que os candidatos a piloto (ou outros) não sejam sujeitos obrigatoriamente a testes psicotécnicos eliminatórios antes de começarem os cursos.
                Tal facto deixa ao livre arbítrio de cada um e ao das escolas, fazerem-no ou não; faz entrar nos cursos uma quantidade elevada de gente que não tem capacidade mínima para a frequência do (s) curso (s) – emperrando todo o sistema – deixa passar entre as malhas pessoas que melhor seria terem escolhido outra profissão, além do que vai originar, mais tarde, uma quantidade de gente frustrada (por não arranjarem emprego), ou profissionais com limitações, na sua vida futura.
                Ora mais uma vez aqui a acção da ANAC devia ser fundamental, a fim de garantir uma descriminação positiva entre os candidatos e entre as ATOs, bem como a de assegurar que as entidades que estejam devidamente licenciadas para efectuarem exames médicos e psicotécnicos, sejam auditadas frequentemente a fim de impedir que o “negócio” e a “concorrência desleal” passe para esse âmbito.
                Do mesmo modo que deve haver um sistema que permita fazer inspecções inopinadas, a fim de detectar quaisquer uso de substâncias psicotrópicas ou excesso de álcool, nos corpos docentes e discentes.
                O serviço de medicina aeronáutica da ANAC deveria estar habilitado, ainda, a receber e tratar casos de alunos com problemas psicológicos ou psiquiátricos que se venham a revelar durante os cursos.
              Seria ainda muito conveniente que todos os assuntos que levantam problemas de interpretação e possam afectar o normal desenvolvimento da actividade das ATOs fossem objecto de CIAs a fim de se uniformizarem procedimentos – uma palavra - chave em toda a aviação – e, ou garantir a justiça relativa entre os intervenientes – uma pedra de toque nas relações humanas.
            Seria ainda de boa prática, disciplinar os contactos funcionais e hierárquicos entre as ATO versus ANAC, bem como os contactos entre a entidade e os alunos, que regulamentarmente se devem fazer através das ATOs e vice – versa.
             Complementarmente a tudo isto e às sempre necessárias e desejáveis inspecções periódicas ou reuniões avulsas seria, estamos em crer, de ponderar a criação de um “órgão/fórum” a nível da ANAC que reunisse anual ou bianualmente, com o fito de fazer o balanço da actividade de instrução no âmbito aeronáutico civil, onde se fariam representar todas as entidades tidas por pertinentes, e onde também se pudessem discutir os problemas que houvesse neste campo de actividade.
              Que é onde tudo começa.
                Finalmente será de eliminar liminarmente a possibilidade de se aceitarem candidatos com o 12º ano sem matemática e física.
                E será de ponderar, ainda, que as ATOs ou a ANAC obriguem à realização de exames prévios sobre conhecimentos gerais, dado não se poder confiar nos conhecimentos dos jovens formados nas escolas secundárias, que se deveriam voltar a chamar liceus e escolas comerciais e técnicas.
                De saudosa memória.
                É que, a maioria dos alunos que frequentam um curso de pilotagem não sabem, sequer, a tabuada. E juro que falo com conhecimento de causa!
               A complicar as coisas inventou-se um sistema de ensino modular. Isto é, para os alunos que não conseguem finalizar o curso no prazo previsto (36 meses), é-lhes agora permitido continuarem o curso por módulos (nocturno, instrumentos e multimotor), desde que tenham cumprido determinados requisitos.
              Ora tal modalidade além de tender a causar uma gestão caótica nos cursos, subverte por completo uma “base doutrinária”, há muito estabelecida na Aviação e que é esta: um candidato a piloto tem não só de ser capaz de se tornar proficiente num conjunto de matérias, exercícios e procedimentos, mas também de o fazer num determinado período de tempo.
              Não é como outro curso qualquer que um “aluno” pode continuar aluno “ad eternum”.
              E sabem que mais? Esta doutrina está, a vários títulos, correcta!
              E já nem vou falar na “licença de piloto “multi – crew (MPL), e no “e - learning”, ou ensino à distância…
                                                                *****
               Dado que os cursos de pilotagem são muito caros e desenvolvem-se num relativo curto espaço de tempo, devem ser pensadas formas de financiamento atrativas, que permitam aos candidatos a pilotos e ATOs, suportar os custos de formação inerentes, sob pena de todo o sistema colapsar ou, no mínimo, não se conseguir a breve trecho o número de pilotos em quantidade e qualidade, que o mercado requer.
                Tudo o que se passa com o espectro dos alunos que vêm frequentar um curso de pilotagem civil – a sua idade, formação, motivação, trilho de vida, etc. – daria um interessante estudo sociológico. Mas ainda ninguém se lembrou de o fazer.
                ANAC, sindicatos, associações de pessoal navegante, indústria aeronáutica, empresas de aviação, etc., poderiam aqui ter um papel relevante.
                É que neste âmbito, como noutros, o único lugar onde o sucesso vem antes do trabalho, é no dicionário.
                Se tiverem dúvidas, mesmo assim, meditem no lema do ministério da educação de Singapura (que bem deveria ser copiado para o de Portugal): se acham que a Instrução é cara, experimentem a ignorância!


                                                                                                        João José Brandão Ferreira
                                                                               TCor Pil AV/Comd. Linha Aérea/Instrutor de voo


[1] Aprovado no seguimento do Regulamento (EC) nº 216/2008, de 20 de Fevereiro, do Parlamento Europeu.
[2] A legislação que se aplica em Portugal é a da UE; porém, quando a legislação europeia é omissa e existe legislação nacional, aplica-se esta, desde que não conflitua com aquela. O que regulava do anterior estes aspectos era o decreto – lei 17- A/2004, de 16 de Janeiro (que sofreu uma alteração dos seus artigos 28 e 29, em Agosto desse ano), que postula (e é idêntico para o curso de piloto comercial - CPL) “ a) ter completado 18 anos de idade à data de emissão da licença; b) ter completado o 12º ano de escolaridade ou equivalente em área que inclua as disciplinas de Matemática e Física ou demonstrar conhecimentos de matemática e física mediante aprovação em exame a realizar pelo INAC, tendo neste último caso, de ter completado, pelo menos, a escolaridade mínima obrigatória”.
     Ora aqui levanta-se a dúvida se os candidatos a admitir têm de ter o 12º ano ou basta o 9º (que representa a escolaridade mínima obrigatória, em Portugal, mais os tais exames (ridículos) nas disciplinas apontadas. Presume-se que o decreto-lei esteja em vigor, já que o Reg. 1178, é omisso nestes pontos.
[3] Em artigo credível, do caderno de Economia do “Expresso” de 19/8/17, é afirmado que serão necessários 617 mil pilotos, para a aviação comercial, até 2035.
[4] Eu sei que não é só o nosso, mas com o mal dos outros posso eu bem, como soi dizer-se.
[5] Decreto – Lei 36061, de 27 de Dezembro.

1 comentário:

  1. Prezado Sr. Tenente Coronel Brandão Ferreira

    Sinceros votos de um dia muito feliz.
    Que ele se repita, por muitos anos, na companhia dos seus entes queridos e, para que continuemos a ter o prazer de ler os seus magníficos escritos.

    Com os meus melhores cumprimentos.
    Manuel A.

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