A turbulência que por aí tem ido no relacionamento político-militar – e não vale a pena escamotear a questão porque ela existe e vai agravar-se – cujo espoletar último se encontra no muito badalado discurso do Sr. Ministro da Defesa e nas reacções que provocou, sobretudo por parte da Associação dos Oficiais (AOFA). Esta “turbulência” não teria, aparentemente, razão de existir. Mas apenas aparentemente.
De facto o MDN escusava de ter feito as declarações infelizes, pouco sustentadas, misturando coisas e generalizando, no encontro promovido pela revista de “Segurança e Defesa”. É preferível estar calado e actuar.
Por ex. se entendeu que determinadas declarações de membros representativos das Associações violam a lei, bastaria que fizesse queixa na PGR, dos autores (já que não tem competência disciplinar sobre eles), e logo se via; se, por acaso, não gosta da lei – que foi feita à revelia do conselho da hierarquia militar – então só tem que levar tal lei de volta a São Bento a fim de ser modificada, quiçá anulada!
Ora não quis fazer nem uma coisa nem outra.
Mais ainda: quando acusou determinados membros associativos de andarem a envolver-se na política (presume-se que partidária), ele, ministro, deveria identificar os eventuais partidos que se estão a servir das Associações para essa actuação e fazer a crítica e o combate a esse nível, sob pena de tudo isto passar a ser uma confusão ainda maior do que já está.
Mas enfim, se algum mérito houve em todo este desaguisado, foi o de se ter provocado uma série de artigos, entrevistas e debates, cuja valia média foi muito positiva o que, apesar de não ter trazido nada de novo, pode ter impressionado a retina de alguma opinião pública sempre distraída do que é importante.
Vamos recuar no tempo para ver se entendemos o porquê das coisas.
Esta questão dos sindicatos/associações, tanto nas FAs como nas Forças de Segurança (isto andou tudo ligado), começou nos já longínquos anos 80, com a tentativa de se criar um sindicato na PSP – que era o “ventre mais mole” de todas as forças. Lembram-se do agente Carreira? Foi ele a “estrela” da companhia.
Ora quando esta ideia surgiu (e toda a gente sabe onde ela nasceu e porquê), os políticos então no Poder, rejeitaram-na usando do argumento falso e errado, de que não poderia haver sindicato porque prestavam serviço na PSP vários oficiais das FAs.
A hierarquia corroborou esta mistificação.
Esta argumentação tem origem na ignorância, falta de coragem, ardis partidários e no maldito do politicamente correcto.
Nunca, até hoje, se quis assumir as verdadeiras razões porque não devem existir sindicatos nas Forças de Segurança, nas FAs ou, até, no Regimento de Sapadores Bombeiros, e que é simples de explicar: a natureza das suas missões e fins últimos, que são a salvaguarda da vidas e dos bens públicos ou privados, não ser compatível com actuações que possam limitar ou pôr em causa o correcto cumprimento dessas missões, e muito menos dar-se azo à existência de hierarquias paralelas.
Por último a tipologia das missões exige um completo e exigente apartidarismo, e sabe-se como não só a tradição, como as leis em Portugal permitem uma promiscuidade inadmissível entre sindicatos e partidos políticos (basta ver o que se passa com a UGT e a CGTP).
Ora como não se quer admitir e assumir tudo isto que acabei de dizer e que qualquer QI médio entende sem dificuldade, deitou-se mão daquele argumento peco, que foi desmontado na hora.
Para tal bastou usar-se um silogismo simples, que os alunos do antigo 6º ano dos liceus aprendiam: “não pode haver sindicatos por haver oficiais das FAs na PSP; logo, se deixar de haver oficiais das FAs na PSP, já pode haver sindicatos”.
De imediato estabeleceu-se uma data limite, na qual todos os militares em serviço na PSP tinham que escolher: ou regressar aos Ramos, ou optar pelos quadros da Polícia. Assim aconteceu (Maio de 1995).
Com alguma lentidão foi promulgada a lei 14/2002, de 19 de Fevereiro, que permitia a criação de sindicatos na PSP, com algumas limitações.
A partir daí constituiu-se a Associação Sindical dos Profissionais da PSP, herdeira da Associação Pró- Sindical da Polícia fundada, em 1982, e cuja coloração política não vou dizer por desnecessário. Seguiram-se outros representando os diferentes postos, alguns “organizados” por outras cores partidárias.
A coisa foi um sucesso: hoje já há nove, sendo um de civis. Os governos é que já não sabem o que é que hão-de fazer com todos eles…
Após a história, mal contada, da substituição do último Director Nacional da PSP, aproveitou-se, também, para correr (é o termo), com o último Superintendente-Chefe oriundo do Exército. Ouviram-se e leram-se algumas vozes de contentamento, quase como um “agora é que vai ser”!
Pobres almas, espero estar enganado, mas ainda os hei-de ver arrependidos, depois dos “jovens turcos” se começarem a digladiar; a corporação ficar ingovernável, com a manta de retalhos que criaram e as fracturas que a previsível futura agitação social e aumento de criminalidade, fatalmente trará.
Quando tudo estiver em cacos, lá teremos que chamar o Exército para colar os ditos, o que vem sendo recorrente desde 1801. Se ainda houver Exército, bem entendido.
Com os sindicatos firmes na PSP, passou-se para a GNR. Aqui o estatuto de “força militar” obstou a que se criassem sindicatos e optou-se por uma Associação (da mesma cor da inicial da PSP), a APG, fundada em 1991. Agora já há cinco (embora uma esteja em dormência).
Sem embargo, a luta para transformar as associações em sindicatos continua activa e, claro, o principal argumento é que a GNR deve perder a sua condição militar…
E chegamos às associações de militares.
Há aqui que fazer uma chamada de atenção breve, no sentido de diferenciar as associações de militares, já que não são todas iguais e não perseguem os mesmos objectivos. A Associação da Força Aérea, a Associação de Especialistas da FA, a Liga dos Combatentes e outras Associações de Combatentes, por ex. são tudo associações de militares. Até a Revista Militar e o Clube Militar Naval (ambos fundados no século XIX), podem ser considerados associações de militares.
Não é de nenhumas destas, porém, a que nos vamos referir no âmbito tratado; as que estão em causa são as chamadas “Associações Sócio-Profissionais” (ASP), que consubstanciam o “associativismo militar”, que é regulado pelas leis orgânicas n.º 3 e 4/2001, de 29 e 30 de Agosto. Esta diferenciação é importante até para não confundir a opinião pública, e alguém devia ter chamado a atenção do Sr. Ministro da Defesa para isso.
A primeira associação a aparecer foi a dos sargentos, em 10 de Junho de 1989, seguida da de oficiais, em 12 de Outubro de 1992 e, finalmente a de Praças, em 24 de Fevereiro de 2000; menos conhecida, existe ainda, a Associação Sócio-Profissional da Polícia Marítima fundada, em 18 de Maio de 1991.
A origem do associativismo militar teve, inicialmente, as mesmas motivações existentes nas forças de segurança e foi muito favorecido pelo desleixo, incompetência e nenhuma prioridade, com que os sucessivos governos trataram a Instituição Militar. Outrossim por terem enredado continuadamente, as chefias militares em constrangimentos tais que, na prática, as impedem de defender as FAs e os seus servidores.
Neste âmbito podemos estabelecer uma fronteira quando o General Soares Carneiro – oficial, aliás, de grande gabarito – proferiu uma frase infeliz, enquanto CEMGFA, em que afirmou “que não era chefe de nenhum sindicato”. Tal frase caiu muito mal nas fileiras.
A segunda fronteira pode-se estabelecer aquando da lei 15/92 de 5 de Agosto, conhecida pela “lei dos coronéis” (que enviou para casa cerca de 2500 oficiais e sargentos do Q.P., com uma média de indemnizações quatro vezes inferior à dos estivadores dos portos), e dos deploráveis incidentes de então.
O General Loureiro dos Santos, que era o Chefe de Estado-Maior do Exército, tomou determinadas posições corajosas, agregou a si o Conselho Superior do Ramo o que, junto com outros factores, criou uma dinâmica que ia ao encontro da defesa da IM e dos militares. Todavia, regressado de uma viagem oficial ao Brasil, aquele chefe militar pediu a passagem à situação de reserva, sem que, até hoje se tenha percebido porquê.
O Vice-Chefe do Exército, General Cerqueira Rocha, logo nomeado para o seu lugar, inverteu o que estava a ser feito, deitando por terra a dinâmica criada.
Tal atitude provocou grande indignação nas tropas e deu origem à formalização da AOFA, que já estava na forja.
A luta das ASP para conseguirem o seu reconhecimento jurídico foi dura e longa.
O Poder Político tergiversou, como sempre faz: por um lado pretendia ceder ao politicamente correcto (essa maldição que nos persegue!), e queria “dar-lhes gaz”, com o que contava diminuir ainda mais a capacidade de manobra da hierarquia militar; por outro lado tinha que fazer frente à generalidade dos sucessivos Conselhos de Chefes Militares que se opunham às ASP. Porém, esta oposição fazia-se, por norma, no recato dos gabinetes e nunca foram assumidas ou explicadas para a opinião pública, ou mesmo para o interior dos quartéis, as suas posições com a clareza que deviam ter.
As diferentes formações políticas iam recebendo e dialogando com as ASP, meio às escondidas meio às claras, enquanto nos “média” se debatia o assunto, com um crescendo de opiniões favoráveis à actividade destas últimas. Aliás, passou a ser hábito, quando há um problema, ninguém querer saber a posição da hierarquia, voltando-se os microfones e as camaras para os dirigentes associativos…
Até que se publicou as referidas leis.
Estas foram cumpridas, com relutância, pelas chefias militares enquanto, o Poder Político as ia recebendo, nem sempre cumprindo o estipulado, sendo os resultados práticos pobrezinhos.
Entretanto as coisas na PSP começaram a correr mal, com sucessivas querelas e manifestações, entregas de armas, etc. Da PSP começou a alastrar para a GNR e para os militares.
Quando os políticos do “arco do poder” se aperceberam que o “fogo” que todos tinham ateado, estava a sair fora de controlo, começaram a colocar entraves às quatro rodas relativamente às ASP (publicando, por ex., o Dec. Lei 295/2007, de 22 de Agosto, que restringe as leis anteriores). E, aqui, pode estabelecer-se outra fronteira: a primeira manifestação pública dos militares, o chamado “passeio no Rossio”.
Curiosamente, quando se começa a dar o distanciamento dos governantes relativamente às ASP, dá-se uma aproximação por parte das chefias militares, que se viram na contingência de fazer limitações de danos, ao mesmo tempo que tentavam utilizar as associações como ajuda a contrariar o cada vez maior asfixiamento das FAs e dos militares.
A situação já é insustentável há muito mas, agora, exorbitou publicamente.
Tudo isto tem sido mal conduzido desde o princípio, continua mal e só espero que não acabe como começou, ou seja, mal…
Estimo que continuem optimistas e contentes e considerem este escrito apenas como mais uma manifestação do meu mau feitio.