segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

D. SEBASTIÃO, O DESEJADO (1554-1578?)

O personagem D. Sebastião é (isto é, tornou-se), uma das figuras mais controversas da História de Portugal e o seu desaparecimento no fim da batalha de Alcácer-Quibir, em 4 de Agosto de 1578, ainda constitui um dos maiores enigmas do nosso rico e conturbado destino comum.

Estarão os leitores, eventualmente, curiosos de saber porque começa-mos o ano a escrever sobre o “Encoberto”. Já lá iremos.

D. Sebastião, “desejado” como o crismaram, bem poderia ser chamado de “infortunado”. De facto nasceu no “fio da espada”, pouco tempo após da morte de seu pai, o príncipe D. João. Ficou sem a mãe, D. Joana de Áustria, pouco depois dos primeiros afagos, por razões políticas e muita desumanidade, que a obrigaram a regressar a Madrid (mãe e filho mantiveram sempre o contacto epistolar e através de retratos que a mãe pedia, sendo curial pensar ser esta a razão porque D. Sebastião é dos reis mais retratados entre todos eles).
Infortunado também, porque cresceu numa Corte dividida e cheia de intrigas, com uma avó castelhana (Regente) e um tio Cardeal, também regente (mais tarde Rei), já algo senil. Apenas teve sorte com alguns dos seus mestres. Como pano de fundo, um país ainda orgulhoso dos seus feitos, mas já em acelerada decomposição moral e material.
O infeliz desfecho da jornada marroquina – cuja razão de ser está longe de ter sido uma “loucura”, como muitos observadores “pouco atentos” teimam em classificar – fez voltar contra ele muitos autores por ligarem a derrota à perda da independência; a acção dos Filipes e a posterior historiografia espanhola, não lhe foram nem serão, por razões óbvias, favoráveis.
Por seu lado a Dinastia de Bragança, apesar de ter a sua origem na Casa de Avis, não tem por esta grande apreço, desde que D. João II fez degolar o 3º Duque de Bragança, mesmo estando este envolvido em alta - traição contra o seu soberano; além disso, durante a Restauração, a Casa de Bragança (entretanto reabilitada por D. Manuel I), encabeçou o salvamento do país e este estava unido à volta de D. João IV. D. João, este, que não poderia ser rei caso D. Sebastião fosse vivo ou aparecesse…
Finalmente, muitos dos historiadores liberais do século XIX a que se seguiram outros “democratas” da I República, quase diabolizaram o Rei - Menino, assacando-lhe incontáveis chagas físicas e morais. Neste âmbito se embrenharam, inclusive, alguns médicos arvorados em historiadores, cujas teses estão hoje desmentidas.
Houve de tudo um pouco, desde António Sérgio que se desqualificou ao chamar a D. Sebastião coisas como “pateta”, “imbecil”, “perfeito pedaço de asno”, “tonto”, “bobo”, “idiota”, “torpe”, “vil”, etc.[1]; até ao insuspeito Prof. Veríssimo Serrão[2] que, aparentemente, foi na onda do “diz-se”sem se ter tomado de cautelas.
Ora o jovem Sebastião – e aqui entra a razão deste escrito – escreveu um memorial, antes de fazer 14 anos – ou seja antes de ter sido coroado Rei – que quase se pode haver como um “programa de governo”, seguramente um código de conduta [3] ·.
Ei-lo, sendo os sublinhados de minha autoria:
    Terey a Deos por fim de todas as minhas obras, e em todas ellas me lembrarey delle.
     Em me deitando, e levantando, conta com elle muito particular.
    Cuidar à noite, em que falley naquelle dia.
    Trabalharey muito por dilatar a Fé.
    Favorecerey muito as coisas da Igreja.
    Armar todo o Reyno.
    Defender alfayas, e delicias.
    Fazer mercê a bons, castigar a máos.
    Não crer levemente, e ouvir sempre ambas as partes.
    Fazer justiça ao grande, e ao pequeno sem exceição de pessoa.
    Tirar as onzenas.
    Conquistar, e povoar a Índia, Brasil, Angola, e Mina.
    Todo o que me fallar deshonestidades, castigallo rijamente.
    Quando houver de fazer alguma cousa, comunicalla primeiro com Deos.
    Reformar os costumes começando primeiro por mim no vestir, e comer.
    Em negócios ter primeiro conta com o bem comum, e depois com os particulares.
    Tirar alguns tributos, e buscar modo, com que Lisboa seja abastada.
    As leys que fizer, mostrallas primeiro a homens de virtude e letras para que me apontem os inconvenientes, que tiverem.
    Levar os súbditos por amor, em quanto poder; ser inteiro aos Grandes, humano aos pequenos.
     As Commendas sirvão se a África.
    Não ter junto de mim, senão homens tementes a Deos.
   Devaçar dos Oficiais de Justiça, e Fazenda cada anno.
    Escrever a todos os Prelados, que fação dizer Missas e Oraçoes por mim, e pedir Jubileo ao Papa.
    Terey nos póstos do mar homens de confiança, e os que entrão, que não sejaõ suspeitos na Fé.
    As cousas, que naõ entender bem, communicallas primeiro com quem me possa dar parecer desenganado.
    Naõ dar, nem prometer nada, sem saber se he injustiça, ou mal feita.
    Mostrar bom rostro, e agasalhado a todos.
    Prover os cargos, e Officios em quem for para isso, e naõ por outros respeitos.
    Naõ desmayar nas dificuldades, antes ter mayor fé, e confiança em Deos.
    Tirar a cobiça.
    Mostrar sempre animo liberal, e naõ aquanhado.
    Gavar os homens, e cavalleiros, que tiveram bons procedimentos, diante de gente, e os que tiverem préstimo para à República, e mostrar aborrecimento às cousas a ella prejudiciaes.
   Naõ dizer palavras, que escandalizem, mayormente quando estiver agastado.
    Os meus Embaixadores andaraõ sempre vestidos à portugueza.
    Em todas as cousas, que fizer, terey primeiro conta com a honra de Deos.
    Serey pay dos pobres, e de quem naõ tem quem faça por elles”.
Ora o que este texto notável revela é um carácter forte, cheio de espírito de missão e uma invulgar soma de conhecimentos e bom senso, em tão jovem cabeça, perfeitamente incompatíveis com os defeitos que os detratores assacam ao “Desejado”.
Resta dizer que a “teoria” apontada pelo Rei foi posta em prática no seu curto reinado, e com invulgar determinação e sentido de justiça.
Permito-me, até, recomendar a sua leitura a todos aqueles que têm assento em edifícios bem identificados ali para os lados de Belém, S. Bento e na Gomes Teixeira. Ámen.

[1] “Ensaios” T. I
[2] História de Portugal, 3º Vol.
[3] Transcrito por D. António Caetano de Sousa, in "História Genealógica da Casa Real Portuguesa, Lisboa, 1733; e citado por Mário Saraiva,in "Nosografia de D. Sebastião", Delraux,1980.

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