Publicado no jornal "O Diabo" de 4 de Janeiro de 2011
Tinha decidido não escrever mais sobre o assunto mas ao assistir ao evoluir do mesmo e ao sentir na pele as consequências das decisões tomadas (e ainda a procissão vai no adro…) resolvi dar mais um contributo para este peditório.
Sem adiantar juízos de valor vamos ver o que se passa quando as desavenças dos de acima, chegam ao elo final da cadeia, neste caso os utentes do sistema.
Um familiar meu e eu próprio tínhamos questões pendentes do foro ortopédico e urológico – justamente as duas únicas especialidades médicas cujos serviços migraram do Hospital da Força Aérea (HFA), para o Hospital Militar Principal (HMP). Acontece que, no que toca à ortopedia, a maioria dos médicos militares e civis em serviço na FA, entendeu não querer passar a trabalhar na Estrela e saíram do serviço activo.
Como a Marinha não fechou ainda o respectivo Hospital nem transferiu nenhum médico para os serviços do Exército à excepção, salvo erro, de um dermatologista, o serviço de ortopedia ganhou os doentes todos, mas não o pessoal para os curar. Ou seja conseguir-se uma consulta, passou para as calendas não gregas mas, para aí, persas. Agendar uma operação deve ser bonito…
O serviço de urologia lá marchou mas, azar dos Távoras, neste caso dos Brandões, o meu familiar que aguardava uma operação, pertence à ADSE, o que era permitido pela FA, mas não é aceite no Exército…Ainda não fui ver como se resolve a coisa, mas provavelmente só no que resta do Serviço Nacional de Saúde, ou no privado, que é para onde o governo nos quer atirar a todos, não só porque não sabe quanto gasta na saúde, mas também porque faz jeito a umas quantas empresas do mercado.
Ora isto são apenas duas pequenas consequências de um processo que nasceu torto, onde ninguém se entende e onde ninguém manda. E, no mais, perfeitamente escusado.
Mas já lá iremos.
Convinha, à partida esclarecer – porque nestas coisas a clareza é importante – se os actuais despachos do Sr. Ministro da Defesa (MDN), foram da sua iniciativa ou inspirados nalgum chefe militar. Mas os despachos e a “Reforma da Saúde Militar”, tudo espremido, versam apenas a questão dos hospitais militares (havia um para a FA e a Armada, em Lisboa; e três para o Exército, dois em Lisboa e um no Porto, sendo que o HMP tem três núcleos de edifícios distintos).
O objectivo, vá-se lá saber porque bulas, é fazer um, ou o hospital único das Forças Armadas. Hospital único não quer dizer, à partida, que tudo estivesse reunido no mesmo local, mas parece que é isso que se pretende, já que se determinou o fecho do Hospital de Belém (infecto-contagiosas) e o da Marinha para, numa primeira fase, restarem o HMP e o HFA, no Lumiar. Mas tudo aponta para que, posteriormente, apenas reste a Estrela ou o Lumiar. A serem as coisas assim, o do Porto também não vai durar muito… a alternativa seria fazer um hospital novo de raiz, o que é impensável não só porque não há dinheiro como não existe vontade política.
Esta ideia não é nova e tem andado aos baldões de ministro em ministro.
As coisas passam-se normalmente da seguinte maneira: pedem-se pareceres aos ramos e fazem-se várias reuniões; ninguém se entende. Porém, raramente os problemas são encarados de frente, evitam-se pôr os dedos nas feridas, quando as há, e opta-se – à boa maneira portuguesa – por atacar efeitos e “dourar pílulas”. A seguir acontece uma de várias coisas, a saber: muda o ministro e volta tudo à estaca zero; mudam os chefes e o processo sofre dilações; formam-se novos GT; fazem-se umas directivas que, ou não são cumpridas; verificam-se que estão erradas; cumpre-se uma coisinha. Andamos nisto há décadas.
Chegou agora um ministro – que obviamente também não percebe nada da função que veio ocupar, mas que tem peso político e com fama de “malhador” – que decidiu cortar a direito. Quando os chefes militares se aperceberam disto, em vez de se unirem, discutirem o assunto e apresentarem uma solução equilibrada, para assim poderem fazer frente às mais do que previsíveis asneiras dos políticos, não senhor, foi cada um para seu lado, tentar salvar uns cacos onde ainda possam dizer que mandam um bocadinho. Isto chegou a extremos inéditos: os médicos militares, que normalmente não ligam a estas “guerras”, passaram a vestir a “camisola” dos Ramos e andam amofinados uns com os outros!
Estamos a falar de quatro (não de quarenta!) chefes militares, que se conhecem há muitos anos, andaram em escolas idênticas e leram pelos mesmos livros, Santo Deus! Adiante.
O que se passa tem alguma razoabilidade? Não tem.
Não faz sentido ter um hospital único das FAs se não houver um Serviço de Saúde Militar único e este também não parece ter qualquer justificação. Cada ramo tem as suas especificidades e necessidades próprias.
Tudo funcionava razoavelmente bem, e os serviços estavam praticamente lotados em todo o lado. Concentrar tudo em um ou dois lugares vai tornar impossível prestar o mesmo serviço a todos os utentes como até agora. E vai custar dinheiro em mudanças e adaptações. Ao avançar-se para um hospital único, este fica dependente de quem? E como vão funcionar os serviços dos ramos e respectiva articulação? Ou seja terá que haver mais um “terramoto” organizativo e legislativo perfeitamente dispensável e inútil.
Depois está-se a olhar para a saúde militar de um modo restritivo, esquecendo-se que esta serve primariamente para apoiar as tropas em operações e que os hospitais militares são a retaguarda de tudo isto e devem articular-se com a “linha da frente” e apoiar a “família militar”.
A única coisa que faria, eventualmente, sentido seria fazer utentes dos hospitais militares o pessoal da GNR e assim “dispensar”o hospital – eufemísticamente baptizado de “clínica” – de que usufruem. Mas tal o Sr. MDN não quer pois não está na sua tutela… Ou seja, só as FAs é que têm que se “racionalizar”, o governo não!
Não se entende o que se ganha com tudo isto, mas podemos apontar os problemas verdadeiros que existem e com os quais, pelos vistos, ninguém está preocupado: harmonizar e disciplinar a qualidade de médico com a função militar – não devo agora desenvolver este aspecto; cuidar do problema da retenção do pessoal que trabalha nesta área; resolver os problemas da carreira dos enfermeiros e sua formação; ultrapassar os constrangimentos oriundos do ministério das finanças relativos à contratação do pessoal civil técnico, indispensável.
Quando se chegar à decisão de fechar o hospital de FA ou o do Exército, nova “guerra” despontará e já começou a ser preparada: como o HMP não tem condições para se bater com as instalações do Lumiar (não tem bons acessos, heliporto, parques de estacionamento, zonas de expansão e carece de verbas substanciais para manutenção de edifícios), a não ser em número de quartos, o Exército tem apostado na manutenção e alargamento da urgência, de proveito mais do que duvidoso.
Problemas há-os sempre, e procedimentos que podem ser melhorados, também. Por exemplo, a Marinha era muito atacada (sem se ponderar bem se eles não teriam razão), por o pessoal no activo receber medicamentos gratuitamente, e os do Exército e Força Aérea, não receberem. Pois bem, ora aqui está algo que devia ser uniformizado num sentido ou noutro, ponderadas as razões. Mas para isto e para a “racionalidade” do sistema seria necessário arranjar este granel medonho?
O MDN já deve estar mais que arrependido, mas como tomou a decisão agora não quer dar o dito por não dito…
Resta a pergunta, que devia em primeiro lugar ter sido equacionada: o que é que se pretende atingir com a “reforma” em curso?